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Francisco Daudt

Lei de Pedro Aleixo

Aquilo que absorvemos deixa de ser do outro, torna-se fragmento da trama inconsútil que nos constitui.

O programa inato mais espetacular com que a natureza nos dotou é o de aprendizado. Não há nada igual em complexidade e beleza.

É ele que forma aquilo que somos, o que chamamos nosso "Eu". Através da Identificação. Ela começa com a simples imitação, foi assim que aprendemos a falar. Mas imitar alguém que admiramos, alguém que nos toca pela integridade, pela ética, pela postura, pela sabedoria, pelas virtudes cultivadas, nos leva a um processo de incorporação autoral: aquilo que absorvemos, e que se sintoniza com o que temos de melhor, deixa de ser do outro, torna-se fragmento, não de uma colcha de retalhos, mas da trama inconsútil que nos constitui. Disse Paulo Freire: quem aprende bem algo com alguém, desse algo, ou desse alguém, torna-se coautor.

Pedro Aleixo foi um civil escolhido pelos militares --para mostrar que ainda prezavam a democracia e que era este o propósito do movimento de 1964-- como vice-presidente do general Costa e Silva. Mas veio o AI-5, e a ditadura arrancou sua última máscara: todos os ministros, mais Pedro Aleixo, foram reunidos em torno do documento autoritário que deviam endossar. "Às favas com os escrúpulos", disse Jarbas Passarinho, e assinou-o. Um por um, todos assinaram. Chegada sua vez, o vice-presidente recusou-se. "Mas vossa excelência teme que o presidente faça mau uso deste instrumento?" E Pedro Aleixo: "Não é ao presidente que temo. Mas quando o autoritarismo vem de cima, o mau exemplo desce em cascata até o guarda de rua, e a este eu temo!"

Todos nós que tivemos belos modelos em quem nos espelhar, a nos inspirar, sabemos intuitivamente da verdade da "lei de Pedro Aleixo", pois passamos adiante o bem que recebemos, para nossos filhos, alunos, amigos, parceiros, leitores, clientes, família, condomínio, comunidade, país. Esta tocha de luz estética-ética (pois o bom é sempre belo) nos ilumina o coração a cada vez que ela ilumina outra, como na metáfora olímpica da trajetória de fogo que se inicia com o sol da Grécia.

Do Olimpo filosófico grego, de Sócrates, Aristóteles, Platão (e Heráclito de Éfeso), passando pelo romano Marco Aurélio (meu mestre de estoicismo), há um longo caminho que resulta no que sou, a sabedoria descendo em cascata até exemplos mais familiares, como o dos melhores professores que tive (meu hoje amigo Fernando Alvariz, 90, é ícone deles), dos jesuítas que me apresentaram São Tomás e sua lógica, de autores (Freud, Pinker, Popper), da ficção (Atticus Finch, o pai que me ensinou a ser pai), dos filhos, clientes e alunos com quem aprendo, a eles, minha gratidão.

Edmundo da Veiga, chefe da Casa Civil de dois presidentes, foi o homem mais gentil e amável que minha mãe (sua nora) conheceu. Numa noite de Natal, num tempo em que as ligações mais simples eram feitas por telefonistas, meu tio presenciou a cena de seu pai, sem ser visto, pegar o telefone. "Número, se faz favor?" disse a moça. "Não quero ligar, minha filha, só quero lhe desejar um feliz Natal", disse o avô. E ela, baixinho, voz embargada, "Muito obrigada".

Era um político de então.


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