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Análise

Aspectos do primeiro romance antecipam o teatro do absurdo

MARCIO AQUILES DE SÃO PAULO

Sentado nu, amarrado a uma cadeira de balanço por vontade própria, esperando pelo nada. Assim Murphy inicia o romance intitulado com seu nome, o primeiro de Samuel Beckett.

O idealismo do protagonista, que prefere "viver no espírito" e recusa-se a trabalhar, tem origem em sua atitude solipsista, que abdica da interação com o ambiente e volta-se primordialmente a sua existência.

A negatividade de Murphy não vem de um pensamento pessimista; antes disso, ela é conceito, método pragmático que coordena todas as suas (não) ações.

Ao redor dessa figura densa todos os personagens secundários gravitam, como planetas em torno de estrelas, fato metaforizado no romance por meio da obsessão de Murphy por astrologia.

A complexidade de seus hábitos verticaliza o protagonista, perante o qual os outros personagens tornam-se horizontais, planos, mas não por isso rasos, uma vez que a excentricidade de cada tipo garante o interesse ficcional e o encanto do leitor.

Neary tem a habilidade de fazer seu coração parar a seu bel-prazer. A prostituta Celia, que tem sua biometria descrita no segundo capítulo, mostra uma devoção quase religiosa ao seu amado Murphy.

O faz-tudo Cooper é caolho, tem três testículos, nunca se senta e nem tira o chapéu. Wylie tem reflexos rápidos como os de uma zebra.

Dotada de um vocabulário exuberante --que inclui termos da matemática, da medicina e da teologia-- e figuras de linguagem abundantes --hipérboles, trocadilhos--, a narrativa é recheada de procedimentos estéticos e temáticos que iriam constituir depois de alguns anos o seu teatro do absurdo.

O comportamento repetitivo e a insatisfação permanente de Vladimir e Estragon em "Esperando Godot" já estão prefigurados ali, assim como o debate à exaustão a respeito da ausência de alguém.

A inércia de uma Winnie enterrada até o pescoço em "Dias Felizes" ou a paralisia generalizada em "Fim de Partida" são análogas à imobilidade de Murphy preso ao seu assento solitário.

As múltiplas referências cruzadas --tanto linguísticas quanto históricas-- e sofisticados jogos de palavras com nomes e sentenças somam-se à estranheza dos personagens na composição de "Murphy", representando o embrião do universo caótico que mais adiante seria designado como beckettiano.


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