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Carrascos de massacre recontam mortes até em forma de musical

Para diretor, recriação ficcional funciona como mecanismo de 'autoengano' para assassinos

Tema de filme chegou a Oppenheimer de forma casual, quando ele trabalhava com camponeses no país

JOÃO CARLOS MAGALHÃES DE BRASÍLIA

"The Act of Killing" (o ato de matar), documentário lançado no ano passado, tornou-se queridinho de críticos e cineastas. Fruto de uma década de trabalho de Joshua Oppenheimer, o filme --que será exibido no mês que vem no Festival do Rio-- nasceu quase por acidente.

No início dos anos 2000, Oppenheimer, recém-formado em cinema na Universidade Harvard, aceitou o convite de um sindicato internacional de trabalhadores rurais para documentar a tentativa de lavradores indonésios de criar uma associação.

Ao chegar ao país asiático, do qual pouco conhecia além da fama das praias paradisíacas e da emergência financeira, o americano, hoje com 38 anos, conheceu uma sociedade lastreada por um dos maiores e menos conhecidos morticínios do século 20. E assustou-se ao ver que os carrascos eram heróis nacionais.

"Foi como se eu chegasse à Alemanha 40 anos depois do Holocausto e descobrisse que os nazistas ainda estavam no poder", afirmou à Folha, referindo-se aos herdeiros políticos de Suharto (1921-1968), feito ditador no país após o movimento político iniciado em 1965, com apoio dos EUA, num globo então dividido pela Guerra Fria.

O golpe de Estado levou a um massacre que, a depender de quem conta, atingiu entre 500 mil e 2,5 milhões de "comunistas" --termo que geralmente não refletia a orientação ideológica do morto.

PERIGO

Durante o trabalho com os camponeses (que levou ao filme "The Globalisation Tapes"), era comum o Exército abordá-lo. Os próprios lavradores então o orientaram: "Talvez seja muito perigoso nos filmar. Por que não procura os autores das mortes?".

Foi o que fez. Passou a registrar todo e qualquer assassino que encontrava. E eles, a maior parte integrantes de grupos paramilitares ainda hoje poderosos e atuantes, não apenas confessavam o que fizeram mas o faziam com orgulho e alegria.

Queriam levar o cineasta até aos porões dos massacres, apresentá-lo a colegas carrascos e, em especial, demonstrar em detalhes como as mortes e torturas ocorreram.

Oppenheimer propôs, então, uma técnica narrativa heterodoxa: que os próprios carrascos dirigissem e reencenassem, para ele, suas atrocidades em cenas de ficção, no gênero que escolhessem. Eles toparam e fizeram até mesmo cenas de musical.

O personagem principal é Anwar Congo, um cadavérico e manso avô, fã de filmes de máfia, que se acha parecido com Sidney Poitier e é famoso por ter assassinado mil "comunistas" com uma técnica de estrangulamento inventada por ele próprio.

Seu companheiro preferencial é Herman Koto, um gângster obeso que se veste de mulher em quase todas as histórias que representam.

"The Act of Killing" é uma espécie de "making of" desses "filmes B", feitos unicamente para serem documentados pelo norte-americano e cujo desenrolar parece reinventar a memória e o discurso de Anwar sobre os fatos.

Mas essas atuações improvisadas são tão realistas, e a maneira com que os carrascos relembram o que fizeram tão delirante, que se torna impossível dizer onde começa e termina a fantasia, mesmo no final supostamente catártico.

Para o diretor, o aparente orgulho dos assassinos, que ele chama de "celebração do genocídio", não prova sua alegada monstruosidade --e sim o oposto. Por entenderem a gravidade do que fizeram, inventam um mecanismo de autoengano radical, diz. "É um paradoxo trágico."

Além da atenção da crítica e de prêmios em festivais como o de Berlim, o filme conquistou duas lendas do cinema de não ficção.

O alemão Werner Herzog ("Não vi na última década um filme tão poderoso, surreal e assustador") e o americano Errol Morris" ("Não se parece a nada que já vi") tornaram-se produtores-executivos do longa após assistirem ao trabalho de Oppenheimer.

Na Indonésia, a obra nunca estreou no circuito normal, e a equipe de filmagem local continua anônima, por motivos de segurança. Mas o longa teve dezenas de disputadas exibições clandestinas e reacendeu o debate sobre o que ocorreu no regime --e como seus efeitos persistem.

Segundo Oppenheimer, a obra não é sobre o passado, e sim sobre "o agora".

Ele conta que militares indonésios disseram recentemente que "é preciso estar prontos para exterminar novos comunistas'". "Questionados sobre quem eram esses, eles disseram: Pessoas que estão se juntando para ver certos filmes'."

DISTORÇÃO

A Embaixada da Indonésia no Brasil afirma que o filme sugere um visão distorcida sobre a questão dos direitos humanos no país. "A Indonésia de hoje não é representada pelo que está no filme", diz Sudaryomo Hartosudarmo, embaixador do país.

Ele também nota que o formato do filme pode dar a "impressão errada" de que se trata de um documentário, quando sua sinopse afirma que ele é baseado nas "histórias, imaginação e memórias" dos torturadores. E diz que, embora o governo indonésio não tenha uma posição oficial, a embaixada respeita a expressão artística de todos, inclusive a do cineasta.


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