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Crítica - Biografia

Obra sobre Salinger utiliza fontes suspeitas

Informações de gente anônima compõem biografia óbvia sobre escritor de 'O Apanhador no Campo de Centeio'

OS BIÓGRAFOS CITAM TRECHOS DE LIVROS DE SALINGER E OS ASSOCIAM A SUA VIDA, COMO SE A LITERATURA FOSSE TODA UMA GRANDE INDIRETA DE FACEBOOK, UM BILHETE PASSIVO/AGRESSIVO

JULIANA CUNHA COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Como humilhar um autor que já foi acusado de beber xixi pela própria filha e de ser um manipulador pela ex-mulher, ambas autoras de livros sobre ele? Diga que o sujeito só tinha um testículo e que isso motivou sua reclusão.

A teoria do testículo tímido é um dos grandes "fatos" inusitados de "Salinger", biografia escrita por David Shields e Shane Salerno, roteirista de "Alien vs. Predador". A obra --lançada simultaneamente a documentário homônimo nos EUA-- sairá no Brasil em janeiro, pela Intrínseca.

O filme, ainda sem data de estreia no Brasil, parece um "book trailer" do livro, e o livro funciona como apoio do filme. Os dois são ótimos materiais de divulgação de um produto final que nunca veio.

Apesar de destroçada pela crítica, a biografia atraiu atenção ao oferecer o que todos se julgam no direito de possuir: a vida pessoal do sujeito.

J.D. Salinger (1919-2010) é um autor complicado de biografar. Saiu de cena no auge do reconhecimento. Seu último conto foi publicado em 1965, pela "New Yorker".

Depois, vieram o silêncio e a recusa em falar à imprensa. Em 1987, saiu de sua masmorra para processar Ian Hamilton, que escreveu uma biografia com várias passagens de cartas pessoais do escritor.

A biografia de Hamilton foi dilacerada, e a vitória de Salinger abriu precedente para decisões que atrapalham a vida de biógrafos desde então.

Shields e Salerno esperaram o biografado morrer. Dizem ter entrevistado mais de 200 pessoas, mas os dados são um mosaico de outros títulos sobre o autor e de fontes suspeitas ou anônimas.

A informação anatômica foi confirmada por duas mulheres que dizem ter se relacionado com ele e que preferiram não se identificar.

É de se questionar alguém que dá um depoimento desses sobre um ex-parceiro sexual (de 91 anos, isolado num chalé). O livro não questiona.

O que há são depoimentos de gente que não via Salinger desde os anos 1950, mas se considera fonte apropriada para falar de sua vida.

A obra joga dados conhecidos sobre o autor de "O Apanhador no Campo de Centeio" (1951) como se fossem surpreendentes: ele gostava de mulheres mais novas, tinha problemas sexuais, recebia os adolescentes da cidade até uma garota escrever sobre ele no jornal local e não era companhia das mais fáceis.

ATIVO

Hamilton conta que, no julgamento, imaginava que veria um ermitão idoso, mas encontrou um homem forte e ativo. A reclusão do autor era relativa à imprensa, não à vida.

A nova biografia demorou mais de duas décadas para concluir o mesmo: Salinger viajava, casava, tinha filhos, casos, amigos. Só não estava disposto a publicar ou a comentar o mundinho literário.

A falha crucial do filme e do livro não são os equívocos metodológicos, mas, antes, a noção determinista e mecânica de associar vida e obra, como se a primeira entregasse a chave interpretativa da outra.

Isso leva a conclusões simplistas, como a de que Salinger é um grande autor devido a traumas como soldado na Segunda Guerra --apesar de ter escrito boa parte de "O Apanhador..." antes disso.

Os biógrafos citam trechos de livros de Salinger e os associam a sua vida, como se a literatura fosse toda uma grande indireta de Facebook, um bilhete passivo/agressivo.

A informação crucial também é confirmada só por fontes anônimas: segundo os autores, Salinger deixou obras inéditas para que fossem publicadas entre 2015 e 2020.

Os trabalhos incluiriam cinco novas histórias sobre a família Glass (grupo de personagens recorrente na obra de Salinger); um romance sobre seu relacionamento com a primeira mulher, Sylvia (que o livro acusa de ter sido informante da Gestapo); uma novela em forma de diário sobre a guerra; um manual de filosofia Vedanta e novas histórias sobre Holden Caulfield, de "O Apanhador...".

É mais do que os leitores poderiam esperar após meio século de silêncio. Mas Coldplay na trilha sonora do documentário já é vandalismo.


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