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Crítica romance histórico

Obra faz bons retratos, mas falha em narração

'A República das Abelhas', de neto de Carlos Lacerda, se perde ao tentar recriar a voz do político celebrizado como orador

MARCELO COELHO COLUNISTA DA FOLHA

Não é um estudo biográfico, não chega a ser um romance, e está um bocado longe de ser literatura. Ainda assim, há muita coisa interessante em "A República das Abelhas", livro em que Rodrigo Lacerda trata de seu avô, o político e jornalista Carlos Lacerda (1914-1977).

O célebre adversário de Vargas, Juscelino e João Goulart não chega a ser, na verdade, o personagem mais marcante destas cinco centenas de páginas. Talvez por uma falha essencial no projeto do autor --tento apontá-la daqui a pouco-- os retratos biográficos mais bem acabados do livro terminam sendo os de outros dois políticos.

A saber, Maurício de Lacerda e Sebastião de Lacerda, respectivamente pai e avô do "biografado". Sebastião foi um modesto republicano no interior fluminense, que se tornou deputado e depois ministro do Supremo. Vestido quase sempre de preto, era capaz de atitudes hoje inconcebíveis de correção moral.

Levava a coisa a tal ponto que, com o filho Paulo prestes a se casar com uma moça rica, foi visitar a família da noiva e achou necessário esclarecer que o filho passara a noite anterior fora de casa.

"Só me resta", declarou para a mãe da noiva, "desmanchar o noivado". A jovem era herdeira de uma fábrica de chocolates, a Bhering, e os Lacerda não tinham um tostão. Os protestos foram muitos e o casamento afinal se fez, com trágicos resultados.

Enquanto Paulo de Lacerda casava com a moça rica, para depois dedicar-se à militância comunista, ser torturado e afundar na demência da sífilis e do alcoolismo, seu irmão Maurício teve uma vida política mais brilhante.

Simpático aos socialistas europeus e aos movimentos sindicais que chegavam ao Brasil, Maurício, pai de Carlos, foi deputado federal nos anos 1910 e teve participação importante na Revolução de 1930. Foi ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, depois, nos 1940, à anticomunista União Democrática Nacional (UDN).

A passagem sobre seu discurso para a multidão da capital federal, no dia do enterro de João Pessoa, é uma das mais bem realizadas de "A República das Abelhas".

João Pessoa, Virgílio de Mello Franco, Siqueira Campos, Osvaldo Aranha, Batista Luzardo: todos esses nomes, de que tomamos vago conhecimento nos livros de história, ganham rosto e significação moral complexa no livro de Rodrigo Lacerda.

A razão para isso é que o autor, desistindo de artifícios literários mais ambiciosos, optou por narrar os fatos em terceira pessoa --no que seria o ponto de vista de Carlos Lacerda a partir do que soube, leu ou testemunhou--, sem economizar detalhes.

O período anterior à Revolução de 1930, com o surgimento do tenentismo, as hesitações de Luís Carlos Prestes, as tentativas de Maurício de Lacerda para seduzi-lo e as alianças em torno de Getúlio, consome parte significativa do trabalho do autor, que se imagina exaustivo.

Já quando se volta ao próprio Carlos Lacerda, o livro se perde por várias razões. A principal é que Rodrigo optou por narrar na primeira pessoa, imaginando ""no estilo de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" --um defunto contando sua história, enquanto nota a própria decomposição dentro do túmulo.

O procedimento faz sentido no romance de Machado de Assis, na medida em que o narrador é um ironista, alguém disposto a ver o mundo com máximo distanciamento e corrosão. Nada mais distante da personalidade de Carlos Lacerda, apaixonado pelo poder e pelas causas do seu momento.

VISÃO ESTRATÉGICA

Como é difícil ter uma visão equilibrada, para não dizer positiva, de um político parcial como Carlos Lacerda, a opção do autor parece estratégica à primeira vista. O próprio Lacerda irá justificar-se, contar sua visão dos fatos, e poucos saberiam defender-se melhor do que ele próprio.

O problema é que o texto não está à altura do personagem. Em vez de um Carlos Lacerda plausível, encontramos parágrafos e mais parágrafos que parecem tirados de uma apostila de história.

Pelo que se sabe, Lacerda era muito melhor orador do que escritor. Mesmo assim, seria melhor evitar que o personagem se entregasse a didatismos tão frequentes.

"O setor industrial", diz o narrador, "continuava precisando de trabalhadores, de preferência treinados, e também no setor agrícola crescera a demanda por novos contingentes de mão de obra".

Referências à "oligarquia", às "elites", juntam-se a anacronismos (será que alguém falava em "multinacionais" na década de 1920?) e clichês. Opiniões "diametralmente opostas", "vida desregrada", "carreira meteórica", os exemplos se sucedem.

Tentativas de formalizar a linguagem para lhe dar aparência "antiga" fracassam de modo constrangedor. "Porei-me bonito", diz o exilado Prestes a um interlocutor, "para, mais tarde, irmos tomar um aperitivo na melhor confeitaria de Santa Fé".

Porei-me? Não se trata de implicância gramatical ou estilística. Os personagens perdem vida, a narração se despersonaliza, tudo fica com jeito de lição de casa, de colagem, quando o texto se arrasta com tais dificuldades.

O cansaço toma conta do autor, que convenientemente encerra o livro em 1954, antes que o golpismo de Carlos Lacerda, contra Juscelino e Goulart, viesse à tona com máxima histeria.

CARLOS LACERDA: A REPÚBLICA DAS ABELHAS
AUTOR Rodrigo Lacerda
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49 (520 págs.)
AVALIAÇÃO regular


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