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Crítica romance

Autor faz bom retrato cômico da humanidade

'A Cidade, o Inquisidor e os Ordinários', de Carlos de Brito e Mello, usa farsa como opção inteligente ao romanesco

O andamento narrativo opera por redundância e acumulação até que os papéis entrem em colapso

ALCIR PÉCORA ESPECIAL PARA A FOLHA

Em "A Cidade, o Inquisidor e os Ordinários", novo livro do escritor mineiro Carlos de Brito e Mello, boa parte da graça está em acertar a leitura com o gênero encenado por ele: a farsa.

No seu modelo medieval mais conhecido, a farsa é uma composição teatral breve, cômica, usada para preencher os intervalos das representações sacras nas festas religiosas. Daí o nome "farsa", do latim "farcire", isto é, "encher", "rechear".

Como aqui não se trata de teatro e tampouco de preencher o intervalo de uma função religiosa, a forma apresenta-se como alternativa inteligente à construção romanesca e, ademais, como recurso para um andamento narrativo prioritariamente conduzido pelo caráter bufão e caricato de personagens e situações bem circunscritas.

No caso, o enredo se dá em torno das ações de um autoproclamado Inquisidor de uma cidade grande,mas não moderna, nem interessante, cujas pistas mais óbvias referem Belo Horizonte, mas potencialmente servem a qualquer outra localidade.

SEM DEUS

Perdida a fé em Deus e na grandeza humana, o Inquisidor cuida de fazer dependurar, à vista de todos, o corpanzil sem asseio da gente "abnorme", vale dizer, aquela que já perdeu o sentido das regras do convívio social, enfronhando-se em casa, num processo lento e implacável de apatia e desdém por si e pelo mundo.

Num mundo católico, tratar-se-ia do pecado da acídia, mas na urbe do Inquisidor já não há traços da Providência.

Talvez se pudesse falar em depressão ou bipolaridade epidêmicas, não fosse a farsa favorecer a ridicularização da matéria, que penaliza a vista com as feiuras e os desmazelos do corpo, ainda que certamente extensivos ao espírito.

Por meio dessa cena básica, acentua-se não propriamente a servidão voluntária dos habitantes ao Inquisidor, pois a vontade já está perdida, mas sim a mansidão disposta ao castigo, o alívio pela autoridade que se impõe na anomia, o vestígio de força dos estereótipos.

O andamento narrativo, muito afrouxado pelos verbos no presente (e não no pretérito perfeito), opera por redundância e acumulação até o ponto em que os papéis entram em colapso e insinuam mudanças tímidas.

Menos mudanças que alternância de papéis: quem pune agora apanha; quem é amado agora dispensa o amor; quem sussurra disfarçado agora fala abertamente; algum dependurado mudo quer berrar etc.

SEM SAÍDA

A amplificação ridícula e o nonsense de uma forma de vida coletiva definitivamente esgarçada, que oscila entre a nostalgia alucinada da ordem (sem qualquer fundamento real) e o abandono à extinção (desde que não dê nenhum trabalho), enquadra a farsa e não permite vislumbrar saída.

Aqui, entretanto, o melhor para o romance seria resistir à tentação alegórica a que se entregam contracapa e orelha ("retrato da subserviência de muitos diante do poder", "desmoronamento da sociedade em nome da vigilância", "a moral e os bons costumes estão satirizados").

Não é a lição moral genérica e denuncista que torna original o romance, mas, antes, a literalidade do retrato cômico que fere o ridículo.

A CIDADE, O INQUISIDOR E OS ORDINÁRIOS
AUTOR Carlos de Brito e Mello
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,50 (472 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo


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