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Contardo Calligaris

Melhor ser imputável ou não?

Por que a defesa tenta provar a insanidade mental do acusado? É bom ser considerado não imputável?

Em fevereiro de 2008, David Tarloff assassinou a facadas e pauladas a psicóloga Kathryn Faughey, no consultório dela, em Manhattan.

Fato significativo para a promotoria, Faughey não era a vítima prevista: Tarloff queria assaltar Kent Shinbach, o psiquiatra com quem ele se tratara no passado, mas Shinbach não estava lá, e Faughey, que dividia o consultório com ele, foi a vítima que dava para assaltar e matar naquela hora.

Tarloff nunca negou o crime, mas o primeiro processo acabou com um juri dividido. A defesa convenceu a metade dos jurados de que Tarloff, presumivelmente esquizofrênico, não seria capaz de entender seus próprios atos. A Promotoria respondeu de duas maneiras: 1) o crime era planejado (cá entre nós, isso não demonstra que Tarloff não fosse louco: é possível ser louco e metódico, como já sabia Shakespeare) e 2) o fato de que alguém seja louco não implica que não saiba fazer a diferença entre o certo e o errado.

Esse segundo argumento da Promotoria (com o qual tendo a concordar) merece uma longa discussão (que seria, provavelmente, inconclusiva).

Mas, seja como for, na sexta-feira passada, o juri de um novo processo concluiu que David Tarloff, quando assassinou Faughey, podia ter sérios problemas psiquiátricos, mas, mesmo assim, ele entendia o que era certo e o que era errado. Em suma, a Promotoria ganhou.

Mas o que isso significa? Quais são as consequências para um criminoso?

No Estado de Nova York, a pena de morte está suspensa desde 1963. Se não estivesse suspensa, a "vantagem" de quem for insano é que ele não poderia ser condenado à morte --pois não se condena à morte alguém que não seja plenamente responsável na hora em que comete seu crime.

Fora isso, por que uma defesa tentaria provar a insanidade mental do acusado?

Em tese, é fácil de se entender: a insanidade retira uma parte do peso da culpa (a culpa é da "doença") e, portanto, a pena é substituída pela necessidade de se curar. Todos prefeririam ter que se curar a ser punidos pelo cárcere, não é? Tanto mais que a cura poderia ser mais rápida do que o tempo da sentença. O indivíduo, internado num manicômio criminal, seria liberado assim que uma junta médica decidir que ele está melhor e não representa mais um perigo para ninguém, não é?

Calma. Caso você planejasse matar alguém e se fazer de louco, não se iluda. A junta médica que liberaria o criminoso "curado" é chamada a assumir uma responsabilidade que sua ciência não lhe permite assumir: como garantir que o criminoso, que parece estar "melhor" hoje, continue "melhor" amanhã e para sempre? Mesmo que a junta tivesse uma fé sem limites no tratamento, ele é raramente definitivo. E será que o indivíduo vai continuar se curando? Será que vai se medicar como prescrito, frequentar as psicoterapias indicadas?

Ultimamente, eu estava imaginando como agiria um "psi" que quisesse proteger uma mulher que assassinou o marido, o qual a abusava física e mentalmente há anos. Minha ideia espontânea era que o psi tentaria mostrar que a mulher, na hora do assassinato, se encontrava num "estado segundo", como diz a psiquiatria clássica francesa, ou num "estado alterado de consciência", como dizem os americanos; ela, portanto, não seria responsável penalmente por seu ato.

Para verificar, perguntei a uma amiga promotora o que ela faria se estivesse na mesma situação do psi e com a mesma intenção (a de ajudar a assassina). Ela respondeu sem hesitar e sem ambiguidades: se a assassina estivesse mesmo (de verdade) num "estado alterado de consciência", ela (minha amiga promotora) tentaria esconder esse fato, para que a mulher fosse julgada como sã de espirito.

Se a mulher fosse reconhecida como insana, ela iria direto para um manicômio criminal, de onde não tem data para sair --de lá, só se sai "curado", e, como disse antes, quem assina em baixo? Segundo minha amiga, sobretudo no caso do meu exemplo, seria muito melhor encarar um tribunal de juri -- claro, escolhendo o maior número possível de mulheres como juradas.

Insana, a mulher que matou o marido pode ficar num manicômio para sempre (embora, a bem dizer, ela já tenha matado a única pessoa para quem ela podia ser perigosa). Sã de espírito, ela teria as circunstâncias atenuantes que cabem a quem matou seu algoz, e, com bom comportamento etc., talvez a pena fosse breve. O que você preferiria?


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