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Crítica - Filosofia

Livro mostra como diálogo com tradição cristã é imprescindível

REINALDO JOSÉ LOPES COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O fato de muita gente não pensar duas vezes na hora de usar crucifixos como adereços --pendurando-os no pescoço ou na cama de casal e pregando-os nas paredes-- é a maior prova de como a ideia da crucificação foi "domesticada" culturalmente.

Na origem, porém, nenhum conceito era mais chocante: o Criador do Universo assumindo a forma humana e sofrendo a pior das mortes. Os primeiros a encontrarem essa ideia não estariam totalmente errados se pensassem em Cristo como uma aberração, um monstro.

Nesse ponto, ao menos, concordam duas figuras que, à primeira vista, não poderiam ser mais diferentes: o filósofo marxista esloveno Slavoj Zizek e o teólogo britânico John Milbank.

Tanto concordam, aliás, que transformaram seu diálogo sobre o tema no livro "A Monstruosidade de Cristo", agora em edição brasileira feita pelo Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

Embora Zizek seja um ateu ferrenho, enquanto Milbank é o fundador da Nova Ortodoxia (uma defesa intransigente dos princípios cristãos medievais hoje atacados pela teologia liberal), a convergência entre o pensamento dos dois vai além da visão básica de Cristo como "monstro".

Ambos também concordam que a narrativa teológica cristã pode funcionar como uma das principais armas contra o que enxergam como "niilismo capitalista": a perspectiva de que o único horizonte para a humanidade é o avanço tecnológico para alimentar o consumo incessante, sem qualquer forma de busca pela transcendência.

Os caminhos do pensamento da dupla, no entanto, bifurcam-se quando a questão é interpretar uma longa linhagem do pensamento filosófico cristão, do dominicano medieval Mestre Eckhart (1260-1328) ao idealista alemão Georg Friedrich Hegel (1770-1831), e entender como essa linhagem pensa o "escândalo" da encarnação de Deus em Jesus Cristo.

Apoiando-se numa leitura idiossincrática de Hegel, Zizek argumenta que, com a morte de Cristo na cruz, o que morre é o próprio Deus (até aí, nada profundamente diferente da teologia cristã tradicional) --mas sem esperança de ressurreição, ao contrário do que esperam os fiéis.

Mesmo assim, no entanto, tal morte serviria para evidenciar um sentido de união "quase mística" entre todos os seres humanos, equivalente ao amor fraternal cristão.

Deus continua morto (para Zizek, aliás, nunca viveu de verdade); entretanto, pode ser encarado como essa entidade "virtual" que pereceu na cruz e ajuda a garantir uma união mais profunda entre as pessoas do que a permitida pelo niilismo capitalista.

É óbvio que Milbank, como "novo ortodoxo", não pode concordar com esse último ponto, e se esforça para demonstrar que Zizek só é capaz de chegar às conclusões que defende por meio de uma leitura enviesada do que dizem suas fontes cristãs.

Mais importante ainda, segundo Milbank, a visão do Cristo ressuscitado como aquele que triunfa sobre a cruz é uma ferramenta mais poderosa contra o niilismo capitalista do que o Universo totalmente material e "desencantado" proposto por Zizek.

São ideias importantes. Mostram que, mesmo num mundo já muito descristianizado como o nosso, não é possível prescindir do diálogo com a tradição cristã.

É pena que, para expressá-las, Milbank e Zizek precisem envolver seu discurso numa nuvem tão espessa de opacidade linguística. Outro irritante menor, mas considerável, dos textos: as tentativas algo canhestras de tentar tirar lições teológicas de temas científicos, como a física quântica, cuja relevância se refere apenas a domínios muito específicos da natureza.


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