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Crítica - Drama
Resnais rejeita realismo e faz teatro em seu último filme
Diretor morto neste ano analisa reflexos da morte na relação de dois casais
Em "Amar, Beber e Cantar", como sempre, Alain Resnais (1922-2014) nos conduz por um labirinto --construído nesse filme com a colaboração do dramaturgo inglês Alan Ayckbourn.
Estamos no interior da Inglaterra. Ali, dois casais preparam-se para a encenação amadora de uma peça teatral: Kathryn e Colin (Sabine Azéma e Hippolyte Girardot) e Tamara e Jack (Caroline Sihol e Michel Vuillermoz).
Colin, médico de profissão, recebe a notícia de que Georges, seu amigo e cliente, está com câncer e tem no máximo mais seis meses de vida. Com a insistência de Kathryn, acaba rompendo o sigilo médico, sob promessa de segredo. Kathryn, claro, logo passa a notícia ao outro casal.
Seguem-se, no roteiro, as seguintes informações: Georges sofre de solidão, pois foi abandonado por Monica, que vive agora com o agricultor Simeon. É o início de um formidável teatro conjugal.
Nada disso teria maior relevância, no entanto, sem o tratamento particular que Resnais lhe atribui. Rejeitando o realismo, é ao teatro que o cineasta recorre.
Primeiro, observamos os cenários. Até o quarto final do filme, os personagens permanecem sempre em exteriores: a casa de Colin, a casa de Jack, a de Georges, a de Monica --mais os jardins.
Os atores amadores vivem, assim, em cenários. Suas casas surgem em desenhos coloridos, dos quais a câmera se aproxima antes de mostrar os personagens nos jardins. Resnais superpõe camadas, afastando a realidade para nos jogar no labirinto.
Nele, acontece a agonia de Georges, é certo. Mas, sobretudo, as repercussões que a sua morte próxima desencadeia nas mulheres da trama. Mas o teatro não se detém aí. Por um lado, as atitudes de Kathryn e Tamara revelam quão pouco os casais podem se conhecer. Por outro, o quanto amigos também podem se desconhecer.
Além de Georges, a jovem Tilly, filha de Jack e Tamara, é outra personagem que está em permanente extracampo e será decisiva no enredo.
E assim Resnais trabalha cada elemento (a vida, o teatro, as cores, os cenários, os desenhos, o falso) para nos enredar no delicado porém inesgotável humor dessa obra, magnífico fim de vida para um magnífico artista.