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Flip 2014
Debate entre 'maçã e laranja' resulta em manga sem sabor
Americano Carr e argentina Mochkofsky discorrem sobre futuro do jornalismo
Eles tentaram convergir na repetitiva discussão sobre papel da internet, acúmulo de informação e busca da verdade
O jornalista David Carr é de uma magreza alarmante, e sua voz tem a fragilidade de quem passou por inúmeros e graves acidentes na vida. Esteve na Flip para divulgar "A Noite da Arma" (ed. Record), em que reconstitui seus longos anos de bebedeira, maconha, cocaína e crack.
O título do livro faz referência a um dos piores episódios de sua vida "junkie". Carr acabava de ser despedido do jornal em que trabalhava, sai para beber com um grande amigo, terminam brigando, e esse amigo termina apontando o revólver contra ele.
Pelo menos, era essa a sua lembrança daquela noite. O amigo, numa conversa anos depois, apresenta uma versão completamente diferente. Nunca apontou uma arma contra Carr; nunca tivera revólver em casa.
Ocorrera exatamente o contrário: tinha sido o próprio Carr quem, tarde da noite, apareceu em sua casa ameaçando matá-lo.
Qual das duas versões é a verdadeira? Boa questão para um trabalho de reportagem investigativa --e um novo David Carr, recuperado de sua dependência química, é quem se dedica, em mais de quatrocentas páginas, a esse trabalho de jornalismo sobre si mesmo.
Na noite de sábado (2), em Paraty, Carr participou de um debate na Tenda dos Autores com outra jornalista, a argentina Graciela Mochkofsky.
TRAGÉDIA ARGENTINA
Em "Estação Terminal" (e-Galáxia) a autora investiga um dos maiores acidentes ferroviários da história argentina, que matou mais de 50 pessoas em 2012.
Ainda que sua narrativa se organize focalizando os personagens envolvidos na tragédia --a melhor maneira, segundo Mochkofsky, de suscitar o interesse e a comoção do leitor--, "Estação Terminal" pretende servir como ilustração do declínio econômico e político da Argentina.
"Um sistema de descontrole do Estado", disse a autora, "somou-se ao fatalismo da sociedade, e termina cobrando seu preço em vidas".
No debate, Mochkofsky também se estendeu sobre outros dois livros que escreveu, ainda não publicados no Brasil. O primeiro é a biografia do jornalista Jacobo Timmerman, preso e torturado pela ditadura do general Jorge Videla.
Timmerman tornou-se um símbolo da luta pelos direitos humanos na Argentina --mas a ironia é que tinha posto todo o seu talento para a inovação jornalística a favor do regime que, mais tarde, iria encarcerá-lo.
MÍDIA E GOVERNO
Contradições nas relações entre jornalismo e governo também são o tema de "Pecado Original", em que Mochkofsky trata das relações, inicialmente promíscuas, e depois totalmente conflitivas, entre o grupo jornalístico "Clarín" e os governos de Nestor e Cristina Kirchner.
Só metaforicamente --acidentes, vítimas, dependência-- os interesses de Mochkofsky se aproximam dos temas de David Carr.
Ele próprio fez a brincadeira: achou que aquela mesa da Flip seria o encontro de uma maçã com uma laranja, do qual se tentava produzir uma manga.
De fato, o resultado foi uma manga bastante insossa, com as discussões tentando convergir nos habituais e repetitivos debates sobre futuro do jornalismo, papel da internet, acúmulo de informações disponíveis e a busca, sempre necessária mas a rigor inatingível, de uma completa verdade sobre os fatos.