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Crítica Drama

Kiarostami é o diretor das questões contemporâneas

INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA

Com Abbas Kiarostami, o espectador pode ter grande prazer, mas nunca um conforto completo, desde que o filme depende sempre de nós mesmos, que somos chamados a uma espécie de coautoria (o que implica, de certo modo, o fim da ideia de autor).

Em "Um Alguém Apaixonado" estamos diante de uma história sem começo e sem fim. É como se entrássemos na sala com o filme em andamento e fosse necessário imaginar o que aconteceu antes para entender o que está se passando.

Assim, Akiko, moça do interior, não pode encontrar a tia, que veio a Tóquio visitá-la, pois é garota de programa e foi convocada para um encontro com pessoa importante.

Quem é Akiko? Não sabemos. Por que faz programa, estuda e tem um namorado -tudo isso ao mesmo tempo? Também não sabemos. Existe aí uma mistura de curiosidade, necessidade econômica, prazer sexual. Talvez.

O encontro é com Takashi, velho professor aposentado. Homem ilustre? Ilustrado, em todo caso. E por que Takashi procura uma garota de programa? Por solidão? Diversão? Também não sabemos.

Esse é o andamento de nossas dúvidas, mas é também o da satisfação com que seguimos cada cena: a curiosidade de descobrir algo sobre esses personagens que nos foram lançados assim sem grande explicação -tanto mais são fascinantes em seu mistério- nos arrasta.

Noriaki é o namorado da menina e, quando entra em cena, as coisas estão mais ou menos estabilizadas. Quem não está é ele, personagem do ciumento telefonema que Akiko recebe no começo do filme.

Os papéis, quase como em "Cópia Fiel" (porém mais discretamente), não permanecem fixos. O professor pode se converter em avô e conselheiro de ambos. Noriaki passa de amante inseguro a traído violento. Akiko, o centro de tudo, pode se mostrar amiga, devassa, ou transitar da farsa à sinceridade. Ela é muitas. Talvez como todos sejamos na vida.

Ninguém estranhará que Kiarostami, ao fazer o filme, não tenha dado o roteiro todo aos seus atores. Dava-lhes apenas as cenas do dia. Queria, por certo, que eles levassem para o "set" essa espécie de pureza diante das coisas, de surpresa diante de seus próprios gestos e palavras.

"Um Alguém Apaixonado" confirma, penso, Kiarostami como o cineasta que melhor responde, hoje, no mundo, às questões contemporâneas.

Não é só por seu pensamento original sobre a narrativa e pela maneira como faz do espectador um coautor de seus filmes que isso acontece.

E sim, sobretudo, pela maneira de olhar as pessoas -fragmentadas, parciais, deslocadas, quase exiladas de si mesmas- e inseri-las em um mundo conturbado o bastante para nunca acolhê-las de todo.


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