Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrada

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

João Pereira Coutinho

Barrigas de aluguel, revisitadas

Acontece, porém, que o "princípio do dano" não se aplica às "barrigas de aluguel" por dois motivos

O MUNDO é irônico: a coluna de hoje não era para ser a coluna de hoje. Era para ser outra, escrita dias atrás, depois de ler o excelente texto de Hélio Schwartsman sobre o uso e abuso de aviões não tripulados, os famosos drones, pelo presidente Barack Obama ("Guerra à distância", 6/2/2013).

No seu texto, Schwartsman questiona se é moralmente aceitável matar seres humanos, mesmo que inimigos, como se a guerra fosse um videogame.

A essa eu respondo: não é. Quer por razões de princípio, quer pelas consequências imprevistas da ação.

Começando pelas últimas, é provável que Obama tenha mandado abater mais de 3.000 indivíduos só no Paquistão com esses brinquedos aéreos.

Mas também é provável que só uma parte desses 3.000 sejam efetivamente jihadistas, o que significa que a matança de civis inocentes tem ocorrido com frequência.

Não quero imaginar o que o mundo diria se a polêmica dos drones ocorresse sob a presidência do caubói George W. Bush, que também os usou com mais moderação.

Mas sei que o problema dos drones não lida apenas com a dimensão dos "danos colaterais". Também lida com valores que são anteriores às consequências da ação: mesmo em situações de guerra deve existir uma certa "honradez" (não encontro outra palavra) entre soldados.

Transformar a guerra em videogame é, antes de tudo, um ato de covardia que deveria envergonhar qualquer militar.

A coluna de hoje não era para ser a coluna de hoje, repito. Mas eis que Hélio Schwartsman, sábado passado, me interpela diretamente com o seu "Leasing Uterino", uma crítica à minha crítica sobre as "barrigas de aluguel" ("É proibido proibir?", Ilustrada, 5/2/2013).

Schwartsman não concorda com a minha posição kantiana de que, ao alugar o útero de uma mulher pobre da Índia, os ricos do Ocidente estão na verdade a explorá-la.

A posição de Schwartsman pende para uma posição mais consequencialista -e aqui ele usa o "princípio do dano" de John Stuart Mill: "se um acordo é desejado pelas partes e não prejudica terceiros, não cabe ao Estado interferir".

Em teoria, Schwartsman tem razão -e eu subscrevo esse princípio. Acontece, porém, que o "princípio do dano" não se aplica às "barrigas de aluguel" por dois motivos.

Primeiro, porque existe uma parte terceira no acordo cujos interesses não foram tidos em conta.

Segundo, porque o "princípio do dano" só funciona quando reconhecemos que os indivíduos habitam o mesmo planeta (ou, como diria Stuart Mill, a mesma "comunidade civilizada").

Uma família afluente do Ocidente rico e uma mulher pobre da Índia não habitam esse planeta. O acordo pode ser "voluntário"; a mulher indiana pode até ficar melhor do que anteriormente, como escreve Schwartsman.

Mas o ponto de partida é dramaticamente desigual. Há, por assim dizer, um "desequilíbrio de autonomias" que vicia esse acordo. É também por isso que "alugar os músculos por 12 horas diárias ao longo de toda a vida" é uma exploração e um crime. Mesmo que o dono desses músculos aceite alugá-los a um qualquer capataz vitalício.

Isso significa que as "barrigas de aluguel" deveriam ser permitidas entre iguais -por exemplo, entre uma mulher de classe média paulistana e uma mulher carioca do mesmo nível econômico e social?

Também não. Porque o "princípio do dano" não existe apenas para proteger a liberdade dos indivíduos; ele também procura acautelar os interesses de terceiros.

Schwartsman não encontra a parte prejudicada do acordo. E não aceita que a criança possa ser essa parte prejudicada ao descobrir que foi comprada como uma bolsa Louis Vuitton.

Aliás, o autor vai mais longe: se houver trauma, ele é "superável". Porque a alternativa, no fundo, seria nunca ter nascido.

Não sei em que se baseia Schwartsman para afirmar que todos os traumas são superáveis. Se assim fosse, desconfio que a taxa de suicídio no mundo baixaria consideravelmente.

Mas não é preciso sermos tão dramáticos. Porque basta que haja a possibilidade de dano, por mais "tolerável" que ele seja, para que o princípio respectivo exija intervenção do Estado.

Quanto ao resto, devolvo ao meu ilustre colega Schwartsman o elogio contido na sua crítica: é sempre um prazer lê-lo, mesmo quando discordamos.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página