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Memórias que viram histórias

Música de gênios

Rio, 1973

MAURO SENISE

Sabe aquele cara que aos 20 anos não tinha educação musical alguma, sem a menor ideia do que era uma flauta, com o cabelo até os ombros e completamente inseguro sobre qual carreira seguir? Muito prazer, esse cara fui eu. Um jovem, em 1971, que amava Led Zeppelin, que abandonou a faculdade e resolveu estudar flauta na Pró Arte, no Rio de Janeiro.

Minha professora era a grande flautista Odette Ernest Dias, francesa radicada no Brasil. Com toda a paciência do mundo, Odette me apresentou não só à flauta, mas à música de Bach, à de Mozart e à de Pixinguinha (sim, porque Odette, apesar de ser flautista erudita, havia muito já tinha se apaixonado pelo nosso choro). Devo a Odette este "banho de boa música".

Em determinado momento de 1973, Odette reuniu quatro de seus alunos para formar o Quarteto Pixinguinha: Kim Ribeiro, aluno mais adiantado do que os demais, Ronaldo Alvarenga, eu e o quarto membro do grupo, de cujo nome já não me lembro. Um belo dia, lá fomos nós quatro, com Odette à frente, ao Bar Gouveia, na Travessa do Ouvir, segunda morada do mestre Pixinguinha.

Era mais ou menos uma hora da tarde, o bar fervilhava com garçons passando entre as mesas, equilibrando bandejas, gente falando alto, enfim, a balbúrdia comum nos bares do centro do Rio no horário de almoço.

Pixinguinha estava sentado à sua mesa cativa, bebericando sua água (naquela altura, o álcool estava cortado da vida do mestre). Odette se aproximou dele e, com seu sotaque carregado, disse:

-- Pixinguinha, gostarrria de aprrresentar a você meus alunos e pedirrr sua autorrrização parrra que eles coloquem o seu nome no quarteto que estão formando. Eles vão tocarrr "Ingênuo" parrra você.

Bom, tocamos essa música linda composta por ele no meio daquela confusão toda. "Fecha a mesa seis!", "Sai um filé com fritas!", "Mais dois chopes!". Quando terminamos, Pixinguinha, sorrindo largo, autorizou o batismo do quarteto com o seu nome. Comentou que ficava feliz de ver jovens cabeludos tocando a música dele, principalmente "Ingênuo", uma de suas preferidas, e ainda corrigiu uma nota:

-- Bonito, meninos, mas a segunda flauta tocou uma notinha errada. Na segunda parte, é um mi bemol em vez de um ré bemol.

Ficamos felizes da vida com aquela bênção do mestre.

Aí Odette, que tinha levado a flauta dela, disse:

-- Pixinguinha, gostaria de tocarrr prrra você "Syrinx" (uma peça de Debussy para flauta solo).

O velho mestre se levantou da cadeira com certa dificuldade, bateu palmas e, se dirigindo para o povo que conversava alto, disse:

-- Gente, silêncio porque agora a música é séria!

Não conheço lição de humildade maior do que esta dada por uma dos grandes gênios da música.

Pixinguinha morreu alguns meses depois desse nosso encontro, aos 75 anos. Eu segui a carreira de músico e neste ano completo 40 anos de estrada. Hoje, o Quarteto Pixinguinha é um quinteto formado por mim, pelos flautistas Kim Ribeiro e Franklin da Flauta, pelo violonista Raimundo Nicioli e pela flautista Andrea Ernest Dias, filha de Odette que, em 1973, engatinhava pela sala enquanto a mãe nos dava aula.

Não há uma única vez em que eu toque "Ingênuo" e que não sinta de perto aquele sorriso largo, com aqueles olhos apertadinhos, aquela presença linda a pedir silêncio para ouvir a música de um outro gênio.


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