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Diário do Cairo

O MAPA DA CULTURA

A santa, o zoo e o anjo mau

O som dos tiros dá aos bichos ideias suicidas

DIOGO BERCITO

Rabia al-Adawiya tornou-se, de repente, conhecida por todo o Cairo. Não por suas prerrogativas de santa do sufismo, corrente mística islâmica, mas por dar nome à mesquita em que islamitas se aquartelaram nas semanas seguintes ao golpe militar de 3 de julho. Morreram ali dentro, em 14 de agosto, centenas de pessoas, quando as Forças Armadas decidiram dispersar as manifestações.

Adawiya, nascida no século 8º, no Iraque, é agora homenageada em protestos islamitas, quando manifestantes erguem quatro dos dedos das mãos. "Rabia", em árabe, significa "quarta" --número que designa sua ordem na família, nascida após três irmãs. Quando a reportagem esteve no Cairo, em julho, a mesquita de Rabia al-Adawiya era um centro pulsante. Islamitas se reuniam ao redor da construção e, aos poucos, montavam mercados e organizavam uma vida paralela à do resto da cidade.

Hoje, é um templo queimado, desfigurado e vazio. Dois soldados se sentam em sua porta, entediados. É o fim da resistência.

TOQUE DE RECOLHER

O Cairo morre, à noite. Com o toque de recolher a partir das 19h, apesar dos rumores de tolerância até as 21h, ninguém sai às ruas. Nem mesmo os jornalistas, que por costume se arriscam mais.

Da janela do hotel Kempinski, o calçadão que acompanha o Nilo parece uma cena distópica, saída de um filme apocalíptico. As sombras das árvores e dos prédios se tornaram, na imaginação, o endereço do sequestro e do estupro.

Dias após os embates mais sérios da semana passada, a situação ainda é tensa. Mas ao menos o conflito se afastou --não se ouvem mais os tiros de metralhadora.

No fim da tarde, o clima parece adequado para uma caminhada ao longo do rio. Mas os moradores que se aproximam dos estrangeiros, com saudações de "marhaban" (bem-vindo), são de repente assustadores. Crianças atiram pedras, numa brincadeira inexplicavelmente agressiva.

A dois minutos dali, a praça Tahrir --símbolo da insurgência contra o ex-ditador Hosni Mubarak, em 2011-- está vazia. Um colega jornalista comenta que nunca vira o local sem manifestações. Em um muro, se lê, no vermelho da revolução: "Feliz mi amor".

A felicidade, porém, não visita o zoológico da cidade. O jornal egípcio "Al-Masry al-Youm" relatou, durante a semana passada, que os sons de disparos e de manifestações têm levado girafas, rinocerontes e elefantes a pensar no suicídio, tamanha a angústia cairota. Com a audição aguçada que lhes é característica, eles estariam se chocando contra os muros, a fim de se machucarem.

BARBA E CABELO

A barba cheia e escura, motivo de orgulho entre alguns muçulmanos, tornou-se símbolo de uma perigosa ligação no Cairo.

Diante do preconceito em relação aos islamitas, seguidores do presidente deposto Mohammed Mursi, jovens seculares não querem ser tomados por religiosos. Pode ser perigoso, dizem alguns.

Um deles raspou a barba, transformando-a num cavanhaque. Com isso, suas feições agora se aproximam mais das de um latino-americano.

Na periferia, um grupo de homens para de conversar quando vê passar três muçulmanos de longas barbas. O silêncio é acompanhado, em seguida, do comentário que todos suprimiram. "São da Irmandade Muçulmana", um diz. "Vão voltar para nos pegar."

O receio é, de certa maneira, desvinculado da realidade. Islamitas foram massacrados, nas últimas semanas, desde o golpe de Estado. No dia 14, ao menos 638 morreram quando o Exército reprimiu as manifestações na mesquita de Rabia al-Adawiya. Agora, se escondem.

ANJO

Prognata, de óculos escuros Armani e calça puída de cintura alta, o motorista Malak, 58, rasga as ruas da cidade com seu táxi como um "bad boy" cairota.

Cristão, seu nome significa "anjo", em árabe --como se tivesse sido nomeado de acordo com o oposto de sua personalidade.

A buzina é familiar da palma de sua mão direita, com a qual ele a cumprimenta insistentemente e, por vezes, sem razão aparente. Basta que alguém nas ruas lhe lance um olhar atravessado, e lá está Malak do lado de fora, discutindo em seu sotaque incompreensível.

Por vezes, parece que é surdo. Ele não entende o que lhe falam nem mesmo ao pé do ouvido. A um estrangeiro que tenta conversar em árabe com ele, responde que "no English, no English!". Sem inglês. Está sempre bravo.

As consoantes não lhe saem, quando fala, como se conhecesse uma língua particular montada a partir de vogais.

Malak tem um filho e uma filha. Entre tantas reclamações que desfia, há uma que diz respeito ao futuro da prole. "Aqui há muita vingança", afirma, sobre os ataques a cristãos no Egito.


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