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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

A capelinha de Manuelzão

Andrequicé, 1995

FERNANDO GRANATO

A estrada era esburacada. O ar seco, típico do sertão, provocava grande poeira. Estávamos eu e o fotógrafo Walter Firmo num carro alugado, rumo às ruínas de uma antiga capelinha, erguida na fazenda chamada Baixio da Sirga (interior de Minas) a pelo guia que nos acompanhava: Manuel Nardi, o Manuelzão, imortalizado na obra de João Guimarães Rosa.

No conto "Uma Estória de Amor", depois publicado no volume "Manuelzão e Miguilim" (1964), Rosa descreve a saga da construção dessa igrejinha que procurávamos naquele junho de 1995. Trabalhando como um repórter, o escritor mineiro, já projetado pelo sucesso de seu primeiro livro, "Sagarana" (1946), resolveu seguir uma boiada em maio de 1952.

E o fez nas imediações de sua cidade natal, Cordisburgo, para depois escrever com mais propriedade seu "Grande Sertão: Veredas" (1956). Nos dias que passou na companhia dos boiadeiros, entre eles Manuelzão, o escritor ainda coletou material para outros textos.

"O João Rosa perguntava de tudo", relatou Manuelzão. "E ficou impressionado quando eu contei que tinha construído a capelinha para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro a pedido de minha mãe. Sempre tive preguiça de padre, mas pedido de mãe a gente atende."

O velho lembrou ainda que Rosa carregava uma caderneta pendurada no pescoço por uma cordinha, para manter as duas mãos firmes nas rédeas. "Nela, tudo ele escrevia", contou. "O nome das plantas, como era o canto dum passarinho, as conversas da gente."

Conforme o carro avançava em meio à vasta plantação de eucaliptos que havia tomado conta do sertão, Manuelzão, sentado na frente, ia narrando com sua voz rouca peculiaridades daquele maio de 1952: "O João Rosa inventou alguma coisa. Mas manteve o principal do que viu e da história que contei para ele. Só trocou alguns nomes".

Firmo e eu buscávamos detalhes da aventura que Guimarães Rosa havia vivido entre os boiadeiros, alimento para a sua obra maior. Com a cópia das cadernetas do escritor nas mãos, o objetivo era seguir as mesmas trilhas que ele tinha percorrido 43 anos antes.

O sertão não era mais o mesmo. "Acabou tudo que é vivente", comentou Manuelzão. "Onde tem eucalipto não fica nem urubu."

Além do eucalipto, carvoarias se espalhavam pela região, no centro de Minas Gerais, para abastecer as siderúrgicas produtoras de ferro-gusa. E os vaqueiros, que antes percorriam aquelas empoeiradas estradas com seus melancólicos aboios, viraram carvoeiros. "Agora boi só viaja de caminhão por essas paragens", explicou.

Chegamos ao local da antiga capelinha. O mato subia alto. Sobraram apenas as madeiras da estrutura externa, já apodrecidas pelo tempo. Ao lado, quatro túmulos de um pequeno cemitério sertanejo, entre eles o da mãe de Manuelzão.

Como disse o escritor, "um cemiteriozinho, razoável, cercado de aroeiras, moirões que podiam durar sem acaba, e coberto pelo capim duro do cerrado, no qual, no raiar das madrugadas, o orvalho é azul e mata a sede".

Enquanto caminhávamos pelo que sobrou, avistando ao longe o São Francisco, com suas águas turvas, Manuelzão resmungou baixinho, curvado sobre o túmulo da mãe: "A gente tá na vida emprestado. Deus chama quando ele quer".

Manuelzão morreu dois anos depois desse nosso encontro, aos 92 anos. Na casinha em que viveu em Andrequicé, pequeno vilarejo próximo à Sirga, foi erguido um memorial em sua homenagem.

Nele há fotos, utensílios, coleção de canivetes, sela e a enorme capa de boiadeiro --a fiel e inseparável companheira. Tudo reunido pela mulher dele, dona Didi, já que o personagem de Guimarães Rosa não guardava nada.

"Por mim punha fogo em tudo isso", disfarçou ele, na época da nossa conversa. Que nada --Manuelzão bem que gostava da fama conquistada na literatura.


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