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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

De mãos dadas

Fazenda Acauã, sertão da Paraíba, 1991

LUIZ FERNANDO CARVALHO

Desde menino minha ligação com o sertão foi visceral, um conjunto de impressões e sentimentos muitas vezes estimulados por mim mesmo, já que minha mãe, Glicia Carvalho, que perdi logo na primeira infância, era sertaneja.

Dentro de mim, o sertão corresponde a um espaço onde o mítico e o real convivem de mãos dadas. Nas escavações em busca da imagem mais nítida da mãe, recorri, adulto, a uma infinidade de pesquisas, que me ajudaram também, e fundamentalmente, na construção da imagem de um país.

Eram curiosidades que davam conta de um mundo. Qual o folguedo popular preferido? Qual a música? A comida? Os livros? Foi assim que, pela primeira vez, ouvi um tio meu dizer "Graciliano Ramos". Anotei o nome, li os livros.

No fim dos anos 1930, quando acabava "Vidas Secas", Graciliano concluiu o primeiro livro que daria origem a "Alexandre e Outros Heróis". O escritor teve, no entanto, o cuidado de advertir: "As histórias de Alexandre não são originais, pertencem ao folclore do Nordeste, e é possível que algumas tenham sido escritas".

Mais que uma criação literária, as histórias encerrariam um valor de observação antropológica. O ficcionista empreendera trabalho de escrevinhador das histórias ouvidas no sertão. Seria Graciliano Ramos, neste caso, simples intermediário sem discernimento? Onde estará o escritor em "Alexandre e Outros Heróis"? Com sua presença "mascarada", ele está em tudo.

Pergunto-me quando o li pela primeira vez. Folheei as primeiras páginas do meu exemplar em busca de alguma informação e reencontro em garranchos quase ilegíveis o seguinte registro: "Lá vou eu em busca do meu passado. Lá vou eu à cata de meus heróis". E a data: 04 de fevereiro de 1991.

A primeira leitura me surgiu na memória e, ao me enveredar pela lembrança, uma figura foi se formando, enquanto eu me dizia: mas este "mentiroso", esse "mascarado" eu conheço! Já me sentei à sua volta para ouvir histórias. Essa máscara alquímica que mescla palhaço e rei, eu sei de quem é!

Em 1991 estávamos, Ariano Suassuna e eu, cruzando o sertão paraibano rumo à fazenda Acauã, onde ele passou parte da infância.

A viagem era um misto de aventura e aula, por isso não seria exagero dizer que estava adentrando o sertão pelas mãos de Ariano. Eu perguntava sobre a diferença entre um cabra e um jagunço e ouvia aquela resposta de três horas, que incluía geologia, culinária, música, cordel --e, claro, a diferença.

Assim que chegamos à fazenda e após cumprimentar, um a um, todos os que ali estavam, pediu para rever a casa, que já não era de sua família. Revisitou os cômodos e a capela. Seus olhos reconheciam os espaços, buscando a antiga disposição da mobília, perdida sob o jogo de sombra e luz que compunha, com as paredes grossas, um ar de convento medieval.

Depois pediu que o levassem para ver o rio. Fomos caminhando pelo meio de um espinheiro até alcançarmos aquele leito seco.

Ariano parou, e eu, um pouco mais atrás. Ficamos um bom tempo assim, cercados pelo silêncio: ele, imóvel diante daquela cicatriz na carne do chão. Até que, exatamente acima dele, veio sobrevoar um gavião. "Eu sabia que vocês não abandonariam um sertanejo", disse ele, com alegria de menino.

Nos despedimos e partimos. Avistada do carro, a fazenda Acauã e os acenos de seus camponeses iam desaparecendo na distância.

De repente, Ariano pediu que o motorista parasse. Atravessando a poeira vagarosa que ainda repousava no ar, largou alguns passos em direção ao velho castelo. A poeira cedeu, definindo a cruz da capela, o telhado e as janelas.

O olhar do escritor encontrara ainda uma vez sua Acauã de menino. Suas pernas avançaram mais um passo na direção da miragem, mas ele logo estancou. Caiu novamente naquele silêncio, cortado agora --pude ver!-- por uma golfada que lhe invadiu o peito. Vieram as lágrimas. Com voz embargada, Ariano girou o corpo e disse: "Agora podemos ir. Pronto!". E, secando o sal do rosto, ainda pude ouvir: "Desculpe esse velho bobo".


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