Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Arquivo aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

O autógrafo que eu perdi

Cidade do México, anos 1990

ÁNGEL GURRÍA-QUINTANA

ENTRE AS INÚMERAS perdas da minha vida, uma tem especial importância: a de uma primeira edição de "Doze Contos Peregrinos" (1992), de Gabriel García Márquez.

Até hoje não tenho certeza se o exemplar com uma dedicatória à mão do autor para mim se extraviou quando mudei do México para a Inglaterra ou se a emprestei a um amigo. Venho pensando muito naquele livro desde que acordei, na manhã do meu 40º aniversário, com a notícia de que o escritor colombiano havia morrido na Cidade do México, aos 87 anos.

Por toda a América Latina houve terremotos nos dias que precederam a quinta-feira, 17 de abril passado. No México, chuvas de granizo fora de época causaram estragos e fecharam estradas. Era o tipo de presságio comum nas tramas de seus romances --e, como ele insistia, parte incontornável da realidade latino-americana.

A comoção pública foi notavelmente (mas não surpreendentemente) tempestuosa. Poucos leitores de língua hispânica --e ainda menos escritores do idioma-- podem dizer não ter sido afetados ou mesmo moldados por sua obra.

Seus admiradores, de fato, vinham lamentando já havia muito tempo sua perda, conforme, nos últimos anos, foi ficando mais e mais evidente que ele já não nos deleitaria com outro livro. "Já escrevi o suficiente, não?", ele disse a seu biógrafo, certa vez. "As pessoas não têm por que se decepcionar, não podem esperar mais nada de mim, podem?"

Meu primeiro contato com sua obra foi no ensino médio, quando, sem saber muito sobre o autor, tivemos de ler "Relato de um Náufrago" (1970) --a magistral reportagem, publicada em episódios nos anos 1950, com a qual ele deu início à sua carreira jornalística.

Mais tarde, a descoberta adolescente de "Cem Anos de Solidão" (1967) teria tanto impacto sobre nossas vidas quanto a descoberta do gelo para o primeiro personagem do romance. Nós devorávamos o livro, trocando atualizações sobre a trama à medida que, noite adentro, progredíamos na leitura.

Ler com atenção "O Amor nos Tempos do Cólera" (1985) --cuja abertura sagrou-se como uma das melhores de toda a literatura-- foi um rito de passagem. Na universidade, o uso que Gabriel García Márquez fazia dos adjetivos era estudado pela eficiência.

Em duas ocasiões eu estive com ele. A primeira vez foi em Cuba, em meados dos anos 1990, numa recepção no Palácio da Revolução. Ele estava de pé, ao lado de Fidel Castro, sorrindo marotamente sob o bigode aprumado.

García Márquez ficava à vontade na proximidade do poder --o poder, aliás, era um de seus temas recorrentes. "El Comandante" se elevava acima de todos na sala, mas era Gabo, como era conhecido, quem liderava as atenções.

Mais tarde, naquela mesma noite, um grupo menor, que incluía o escritor, reuniu-se num restaurante no centro de Havana. Da conversa, recordo muito pouco --salvo que Mercedes, sua mulher, o reprovava a cada vez que ele pedia uma nova rodada de bebidas.

O segundo encontro se deu uns dois anos depois, na Cidade do México, em um jantar em homenagem a uma autoridade espanhola. Também desta vez o colombiano era a atração principal.

Eu me lembro de vê-lo contar sobre a cerimônia em que recebeu o Nobel de Literatura de 1982. No caminho para a entrega, os premiados passavam por um longo corredor, no qual pendiam os retratos dos vencedores anteriores.

Ele contou ter parado diante das imagens de Ernest Hemingway, Thomas Mann (que, disse aos presentes, teria ganho o Nobel duas vezes, se a Segunda Guerra Mundial não tivesse estourado) e William Faulkner.

Passei a noite sentado sobre meu exemplar de "Doze Contos Peregrinos", tentando não parecer um desses leitores deslumbrados (ele aceitava graciosamente o infortúnio de ter de autografar livros onde quer que estivesse).

Mas, conforme ele se preparava para sair, tentei a sorte. Segui-o até seu carro e pedi a dedicatória. Ele me perguntou qual daqueles contos era o meu preferido. "O Avião da Bela Adormecida", respondi, recordando a história do homem que, embasbacado pela visão de uma mulher num aeroporto, depois se descobre sentado ao lado dela num voo para Paris, durante o qual tudo o que lhe cabe é vê-la dormir, por horas a fio.

Gabo piscou para mim, como se reconhecesse um camarada de voyeurismo. Abriu o livro e escreveu, com uma caligrafia trêmula e meio bêbada: "Para Ángel e sua bela adormecida".


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página