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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Tiros no teatro Anchieta

São Paulo, 1972

ODILON WAGNER

Matinês de sessões teatrais sempre foram uma tradição no teatro brasileiro. Quando comecei minha carreira, fazíamos sessões de terça a domingo, com matinês às quintas, que, diga-se de passagem, sempre foram um sucesso, pois há um público ávido por atividades culturais durante o dia.

Recentemente entrou em cartaz no teatro Shopping Frei Caneca, em São Paulo, minha peça "A Última Sessão". Resolvemos reativar as famosas matinês das quintas e, mais uma vez, o resultado é excepcional, o teatro sempre lotado.

Isso me fez lembrar o início de minha carreira, na segunda peça profissional em que trabalhei, em 1972, "O Homem de La Mancha", musical estrelado por Paulo Autran e Bibi Ferreira, dirigido pelo genial Flávio Rangel.

Numa determinada matinê de quinta-feira no teatro Anchieta, estávamos no palco, e Bibi Ferreira, que interpretava Dulcineia, a amada de Dom Quixote, cantava seu primeiro número musical, quando notamos uma movimentação estranha lá na cabine de luz, que ficava no fim da plateia, no andar de cima. Gente correndo para um lado, luzes que acendiam, correria para o outro lado.

No palco, notamos que Bibi ficou apreensiva, mas continuou a canção, embalada pela bela orquestra regida por Murilo Alvarenga --que, por estar posicionado nas coxias, não podia saber o que ocorria na cabine de luz.

De repente, três estalos fortes que, do palco, logo percebemos serem tiros. Bibi parou de cantar e balbuciou "Paulinho", referindo-se ao seu marido, Paulo Pontes, produtor do espetáculo, que ficava na administração, lá pelas bandas da cabine de luz.

Todos ficamos imóveis por alguns segundos; a orquestra continuou tocando por mais uns instantes, até o maestro perceber que Bibi havia parado de cantar e cortar os músicos --que, não entendendo o que estava acontecendo, desordenadamente pararam de tocar.

Nesse exato instante, nós, jovens tropeiros do elenco, saltamos pela plateia acima até a última fila, onde ficava a porta de entrada da cabine de luz. Eu, muito jovem e intrépido, cheguei na frente de todos e só tive tempo de ouvir: "Saiam da frente que ele está descendo". Em seguida me deparei com um sujeito com dois revólveres na mão, que passou a menos de meio metro de onde estávamos e, sem olhar para ninguém, com uma frieza espantosa, foi em direção ao saguão, ganhou a rua e desapareceu.

Estávamos ainda parados, atônitos no alto da plateia. Bibi, petrificada no palco, na mesma posição desde que havia parado de cantar.

Voamos de volta para o palco e retomamos nossas posições. Alguém deu a ordem, e o maestro atacou novamente o tema musical, que Bibi retomou com uma vitalidade impressionante, sob os aplausos do público. É como se diz: o show tem de continuar.

Toda a ação não deve ter durado mais que um minuto, mas parecia uma eternidade naquele momento. O impressionante é que a plateia não se agitou e, até hoje, tenho a impressão de que não percebeu o que havia ocorrido, pois olhava nossa movimentação como se aquilo fizesse parte do espetáculo.

Depois de a matinê encerrada, viemos a saber do ocorrido. O tal meliante fora pego fuçando os pertences dos atores nos camarins. A camareira deu o alerta, o fulano fugiu, mas se perdeu nos corredores internos do teatro e acabou se escondendo na cabine de luz.

Um policial foi chamado e iniciou a perseguição. Tiros foram trocados --um deles atingiu o ombro do seu Zé, iluminador do teatro--, o gatuno conseguiu tirar a arma do policial, e o resto vocês já sabem.

E Paulo Autran, onde estava? No calabouço do cenário, preparando-se para entrar em cena. Não deve ter entendido nada. Poderia ter sido uma tragédia, mas naquele tempo até os ladrões eram mais éticos.

Após aquela matinê cheia de emoções, mais tranquilos porque seu Zé estava bem (o tiro foi só de raspão), comemos um lanche e logo estávamos nos preparando para a sessão da noite, que, mais uma vez, estava lotada de gente ansiosa por ver e ouvir a abençoada Bibi cantar sua Dulcineia.


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