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Minimalista Carl Andre volta à cena nos EUA

SILAS MARTÍ

RESUMO Afastado do convívio com o mundo da arte desde a morte trágica de sua mulher em 1985, o escultor Carl Andre segue sendo um expoente do minimalismo americano. Sua obra está de volta à cena com sua primeira retrospectiva nos EUA, centrada não só em suas conhecidas esculturas metálicas como também em seus poemas.

Não espanta que Carl Andre, antes de se tornar o escultor minimalista famoso por cobrir o chão dos museus com placas de metal, tenha trabalhado organizando composições ferroviárias na companhia de trens da Pensilvânia, no nordeste dos Estados Unidos. No começo dos anos 1960, seu trabalho era encadear os vagões de carga, unidades quase sempre iguais e intercambiáveis, para evitar desastres sobre os trilhos.

Sua Quincy natal, uma cidadezinha portuária no Estado americano de Massachusetts, também tinha algo dessa aspereza metálica. Numa busca rápida, as primeiras imagens que surgem do lugar mostram vigas de aço empilhadas no porto e operários construindo navios à beira de um oceano sem fim.

Essa natureza industrial, de sequências que parecem se propagar ao infinito, depois se tornaria marca da produção plástica de Carl Andre. Do mesmo modo que os materiais usados na sua escultura, como o cobre, parecem ter sido surrupiados do universo das locomotivas e cargueiros.

Nessa pegada, Andre se firmou no panteão dos artistas machões que marcaram o minimalismo norte-americano --dos macacões jeans (que usava à beira dos trilhos e adotou como uniforme para toda a vida) à crueza de suas esculturas.

Contudo, por causa de um episódio trágico, o artista caiu no ostracismo há quase duas décadas, fazendo um silêncio tão agudo quanto o de suas peças.

No dia 8 de setembro de 1985, sua terceira mulher, a artista cubana Ana Mendieta, despencou da janela do 34º andar do apartamento onde ele vive até hoje em Manhattan, Nova York.

Testemunhas à época diziam ter ouvido gritos antes da queda. Ao atendente do 911, número telefônico para emergências nos EUA, Andre confirmou que houve uma discussão e que Mendieta caiu lá de cima muito exaltada, mas à polícia disse que ela havia ido dormir sozinha e que ele só notara mais tarde a ausência da mulher e a janela aberta. Ele chegou a ser preso por suspeita de homicídio, julgado e depois absolvido da acusação.

Desde então, Andre evita o mundo da arte e passa quase o tempo todo trancado em casa. Muitos de seus amigos de longa data cortaram relações com ele. E sua obra, que ele adora dizer que "não significa porcaria nenhuma", vem ganhando uma aura cada vez mais enigmática, embora seja, nas palavras dele, sempre aquilo que é --placas de metal são placas de metal e tijolos são tijolos.

"Meu trabalho não tem nada a ver com ideias, tem a ver com matéria. Sou um escultor, e esculturas são objetos materiais em três dimensões. Estou mais interessado nas qualidades de um material do que nos contornos da Vênus de Milo", diz ele à Folha.

"Desde o minimalismo, eu não lido mais com arte. Digo às pessoas que já me aposentei. Continuei fazendo exposições de um modo consistente por muito tempo, mas depois fui largando tudo."

RETOMADA No caso, é o mundo da arte que vem se apoderando agora da obra do recluso Andre. Mesmo que ele seja indiferente a tudo, uma redescoberta de seu trabalho está em curso desde o ano passado, quando Massimiliano Gioni, o curador do New Museum, em Nova York, levou diários, poemas e outros objetos pessoais do artista para uma das salas da Bienal de Veneza que organizou.

Na mesma cidade italiana, um remake de "Quando Atitudes se Tornam Forma", a clássica mostra organizada nos anos 1960 em Berna pelo curador suíço Harald Szeemann, levou suas placas de cobre à Fundação Prada, causando um misto de espanto e saudosismo no "jet set" da arte que passava por ali.

A partir de amanhã, em Nova York, o Dia:Beacon, o famoso museu de arte contemporânea ao norte da cidade, fará a maior mostra já dedicada a Andre desde 1970, com 50 esculturas e mais de 200 poemas escritos pelo artista.

"Sculpture as Place" será a maior retrospectiva de sua obra e a primeira mostra a rever todas as fases de sua carreira em solo norte-americano. Isso porque Andre teve até hoje acolhida muito mais calorosa na Europa do que nos EUA, seja pelo gosto dos colecionadores europeus, seja pela distância do escândalo da morte de sua mulher.

"Meu trabalho sempre foi comprado na Europa, começou a ser colecionado por lá e teve seu valor reconhecido lá primeiro", conta Andre. "Foi só depois que comecei a fazer mais mostras nos Estados Unidos. Os europeus são capazes de maiores aventuras intelectuais do que os americanos. Americanos só assistem à televisão. Se algo não passa na TV, eles não acreditam."

Então pergunto como ele se sente de volta aos holofotes do mundo da arte. "Essas coisas vêm em ondas, é como a moda", diz ele. "Não tenho nada a ver com nada disso. Concordei com que fizessem essa exposição agora impondo uma única condição, que é me deixar livre de qualquer responsabilidade pela mostra. Não quero nenhum contato com a coisa, e acho que eles também preferem que eu nem entre no meio."

INVENÇÃO De certa forma, essa atitude um tanto apática lembra as circunstâncias da primeira mostra individual que fez na vida, em 1965. Nada estava planejado, e ele foi chamado às pressas para substituir com suas obras uma exposição que havia sido cancelada na galeria Tibor de Nagy, em Nova York. Um de seus amigos sugeriu que a galeria mostrasse as obras dele e, em menos de duas semanas, Andre teve de inventar uma série de esculturas.

Havia só um detalhe curioso. Como a galeria na rua 57 ocupava um antigo sobrado, com um piso que não aguentaria as peças de metal e madeira que Andre vinha fazendo até então, a solução foi criar uma série de vigas de isopor, imitando madeira. "Não importava o que eu fizesse, só tinha de ser leve", lembra o artista. "O isopor me dava um grande volume mesmo com uma carga muito pequena, para que a galeria não afundasse e destruísse o salão de beleza no andar de baixo."

Embora menos impactantes que suas peças de metal, as vigas de isopor de Andre não destoavam do discurso do artista. "Era preciso reagir às circunstâncias, superar os limites criando esculturas adequadas ao contexto", resume Andre. "Nunca começo com um desenho para ser executado em algum lugar. Vou ao lugar sem nenhuma ideia predeterminada e vejo que desejo surge naquele lugar, é um processo dialético. Acredito que toda obra de arte começa com um desejo, não com uma ideia."

É dessa forma que o artista justifica sua série de esculturas mais célebres, os quadrados de cobre que podem cobrir toda a extensão de uma sala ou serem alinhados para configurar uma trilha só limitada pelo número de placas disponíveis para a composição.

"Tinha o desejo de experimentar isso, que era algo que eu nunca havia feito", conta o artista. "Quando cobri o chão da galeria com essas placas, todo mundo achou bizarro, fora de série, mas hoje tornou-se um clássico do minimalismo. Além do mais, mostra como a história distorce tudo. Ninguém levava isso a sério quando eu comecei, e nenhuma escola de arte sonhava em ensinar algo assim. Diziam só aquilo que não se podia fazer, enquanto hoje qualquer um ensina esse tipo de coisa."

Esse tipo de coisa, aliás, ainda nos anos 1960, ganhou tal fama que chamou a atenção de Harald Szeemann. O suíço então levou as placas de cobre de Andre para uma mostra no Kunsthalle de Berna.

Era o início da consagração de uma vanguarda --embora em 1969, quando o curador expôs a obra de Andre ao lado de peças dos hoje clássicos Joseph Beuys, Bruce Nauman, Sol LeWitt, Walter De Maria, entre outros, tudo parecia fora da ordem plástica do dia.

"Não lembro como foi, mas o Szeemann descobriu o meu trabalho, tinha visto umas fotografias", lembra Andre. "Então fiz uma proposta específica para a mostra, e ele topou. Hoje isso não acontece mais. A maioria dos curadores só aposta no que já está garantido, quer a segurança de mostrar o que já foi mostrado mil vezes e já não carece de explicação. Não querem ser desafiados pelos críticos nem ter de explicar coisa alguma."

No caso de Andre, explicações continuaram a ser cobradas ao longo de sua carreira. Em 1976, "Equivalent VIII", uma escultura sua composta de tijolos alinhados no chão formando um retângulo, inspirou ataques dos críticos britânicos quando exibida pela Tate Gallery, em Londres. No mesmo ano, chegou a ser vandalizada por um visitante que decidiu pintar os tijolos brancos da obra, hoje na Tate Modern, aberta em 2000.

"Já fizeram coisas atrozes com o meu trabalho", diz Andre. "Mas não faço mais parte da cena artística. Gostava da época em que o mundo da arte era ir para os bares, como o Max's Kansas City, e pegar meninas. Esse era o único propósito da vida social em torno da arte. Havia algo de romântico nesses bares, muitas garotas bonitas. E essa é uma vida que já não existe mais."


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