Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Pé ante pé

O preço da salada e outros mitos da moeda

JOÃO SAYAD

RESUMO Na opinião de economista, regime de metas de inflação, defendido por candidatos à Presidência, é desestabilizador. A economia regida pela indexação é falível, pois esta se atrela a variações causadas por fatores aleatórios, e a taxa de câmbio, corrigida e estabilizada, seria o caminho para que o real mantenha seu valor.

Modernidade é a crítica a todas as tradições --às doutrinas religiosas, ao poder aristocrático, aos costumes sociais. Começa com o Iluminismo e a Revolução Francesa. Há 40 anos, a modernidade se tornou, ela mesma, tradição. O pós-modernismo passou a criticar a razão como a nova tradição, um disfarce de novas formas de opressão, um novo mito. Venho de longe, da história e da filosofia, para falar de um dos pés do tripé que os candidatos a presidente mencionam como sagrado.

O regime de metas de inflação se propõe a manter a estabilidade do valor da moeda a partir do controle da taxa de juros de curto prazo, chamada, no Brasil, de Selic. No século 19, a estabilidade do valor da moeda era dada pelo ouro. No período pós-Guerra, a estabilidade deveria ser obtida pelo controle de M1 --isto é, da quantidade total de papel moeda em poder do público mais o total dos depósitos a vista.

As inovações criadas pelo setor financeiro tornaram essa proposta obsoleta. Os bancos inventaram tantos produtos novos --poupança, fundos, títulos-- que, hoje, não faz sentido controlar a quantidade de moeda. Por isso, quando Paul Volcker assume o Federal Reserve (o Banco Central americano), nos tempos de Ronald Reagan, anuncia que fará um controle mais rídigo de M1, mas, de fato, aumenta a taxa de juros de curto prazo. Diz que obedece ao mito monetarista, mas não obedece. Deu certo: a inflação passou a ser, na Europa e nos Estados Unidos, um problema histórico do século 20. No Brasil e em outros países da América Latina, com a exceção do Chile, a inflação está viva e bem-disposta.

Os índices gerais de preço, porém, são só uma medida da taxa de inflação. São médias de dezenas de milhares de preços, em que cada preço entra na média multiplicado por um peso (que pode ser a participação daquele produto no orçamento de uma família, calculada em um determinado ano, até que o IBGE faça nova pesquisa). E o Banco Central se propõe a variar a taxa de juros de forma que essa média ponderada não cresça mais do que 4,5% ao ano.

É uma proposta arrogante e pretensiosa: o Banco Central tem de garantir que a média dos preços de todos esses produtos --smartphones, tomate, remédios, ovo, peixe, petróleo, cujo valor internacional depende até de conflitos étnicos e religiosos-- não suba mais do que 4,5% todos os anos.

No Brasil, a tarefa parece ainda mais pretensiosa e arrogante. Porque, desde 1964, os brasileiros foram treinados em indexação.

Em todo o mundo as pessoas acompanham a inflação. Aqui o olhar é mais intenso e cuidadoso. Na falta de assunto, a televisão manda uma equipe para o supermercado e entrevista uma dona de casa que reclama dos preços das hortaliças ou da carne. E, desde 1964, a indexação é regulada por lei e se constitui em direitos ou deveres das empresas e das pessoas. Depois do Plano Real, a indexação diminuiu. Mas ainda está aí.

A taxa de inflação é anunciada com duas casas decimais. A inflação do mês passado foi de 6,31 % (menor do que a do mês anterior, de 6,46%). Mas medidas de inflação são imprecisas. Diferentes índices com diferentes ponderações dão resultados diferentes. A diferença pode ser imensa: maior que os dois pontos percentuais, para mais ou para menos, que compõem a margem de erro nas pesquisas de intenção de voto do Datafolha. O crescimento do índice geral de preços deveria ser anunciado assim: a inflação foi de 6,31%, mas, levando em conta a margem de erro, pode ter sido de 7% ou de 5,60%. Aumentou ou está em empate técnico?

Nos países sem inflação, o mito é a estabilidade do valor do dinheiro. No Brasil, o mito é a estabilidade do índice de preço.

JUROS O que não é moderno nem civilizado é que, quando estas médias ponderadas sobem, o Banco Central e o governo têm de agir. O BC precisa aumentar os juros de forma vigorosa e preventiva. O governo, sempre no papel de bode expiatório, precisa cortar gastos e se tornar mais eficiente.

Assim, nas sociedades modernas e civilizadas, mas especialmente no Brasil, os empregos, o crescimento da economia e as dívidas das empresas são determinadas pela evolução dessa média ponderada, sujeita a variações aleatórias causadas pela chuva, pelos árabes, pelo Banco Central americano, por greves.

É justo pedir um aumento de salário porque o preço das geladeiras ou dos automóveis aumentou? Quem recebe salário, juros ou aluguéis todos os meses compra automóveis ou geladeiras todos os meses? Os índices de preços, entretanto, incluem esses bens duráveis e todas as rendas se querem corrigidas por esses índices.

Essa é outra questão --o que incluir na medida da inflação. Alan Greenspan, presidente do Fed no período da Grande Moderação (inflação baixa, desemprego baixo e altas nos preços das ações e imóveis), passou a ser criticado depois da crise de 2007-2008 por não levar em conta o aumento dos preços das ações e dos imóveis.

O mesmo dilema ocorreu antes, dando origem à gravidade da crise de 1929. A Bolsa de Nova York explodia num processo especulativo, e o Federal Reserve aumentou as taxas de juros. A crise, tão cruel, durou 15 anos. Só foi resolvida pela Segunda Guerra. Civilizado?

Há casos mais prosaicos no Brasil. Durante o governo militar, o preço do chuchu aumentou. Chuchu é basicamente água, tem pouco valor nutritivo, mas é saboroso misturado com camarões. Invade cercas e muros: é uma praga.

Mas choveu pouco, e o coletor de preços da FGV precisava saber o preço do chuchu na feira e no supermercado. Havia subido 1.000%! Apesar de ter um peso pequeno no índice, quando sobe 1.000%, acaba elevando a taxa de inflação do mês. A explicação do governo --inflação do chuchu-- foi uma desculpa esfarrapada.

No primeiro semestre deste ano, a mesma coisa aconteceu com o tomate. Choveu pouco, o preço do tomate subiu, e o Banco Central aumentou as taxas de juros.

Quando aumenta o preço do chuchu ou do tomate, ninguém fica realmente mais pobre a ponto de exigir correção de suas rendas. Mas o índice que mede a inflação considera o aumento do preço do chuchu ou do tomate como desvalorização da moeda, com os culpados de sempre: o governo e o Banco Central. Resultado: salários, juros e aluguéis são corrigidos para que o dinheiro que cada um recebe seja suficiente para comprar chuchu e tomate quando eles não estão disponíveis.

A moeda nacional tem que ser corrigida para que todos possam comprar morangos silvestres ("fraises du bois") mesmo quando estamos "hors de saison", como dizem os garçons franceses. A indexação gera ainda mais inflação.

Se o caso das hortaliças não comove o leitor, pense nos aumentos do preço do petróleo em 1974 e 1979. O preço aumentou quase dez vezes. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo reduziu a extração de petróleo. Não era possível continuar a consumir a mesma quantidade de petróleo. Mas todas as rendas foram corrigidas como se o problema fosse uma perda de valor da moeda.

OURO A ideia de indexação é do final do século 19. Os clássicos supunham que o valor do dinheiro era independente do valor das coisas que podia comprar e dado pelo preço do ouro, outro mito. Se o dinheiro se desvalorizasse, isto é, se houvesse inflação, a culpa era do governo ou dos bancos que haviam emitido mais dinheiro do que o ouro mantido em seus cofres.

A indexação generalizada é a consequência lógica desse mito. O valor do dinheiro é independente do preço do petróleo ou do chuchu. E, se o dinheiro está se desvalorizando, é porque o governo da época, sempre o bode expiatório, está emitindo mais dinheiro do que a economia está produzindo.

O valor do dinheiro não tem mais muito a ver com o ouro. Depende de uma variedade de preços que podem ser fixados em mercados competitivos, como o do chuchu, a taxa cambial e as ações; ou, em mercados com preços controlados, como o da gasolina e da energia elétrica; ou ainda em mercados onde os produtos são diferenciados, como mercado de automóveis. Esta variedade enorme de processos de formação de preços gera um índice geral de preços que precisa ser controlado pelo Banco Central.

Nos EUA e na Europa, ou mesmo nos países asiáticos, esse problema não existe em tempos normais. O dinheiro é um mito sem contestação. O Brasil é um país com 200 milhões de macroeconomistas clássicos que se perguntam todos os dias quanto vale R$ 1. O mito do dinheiro deu lugar ao mito do índice de preços, apesar de a inflação ter sido controlada e a moeda se chamar, não por acaso, "real".

MITOS Como desmitificar os mitos? Poderia fazer propostas ridículas, apenas para mostrar o lado bárbaro da indexação.

O Banco Central poderia investir em reservatórios de água para irrigação, garantindo a estabilidade do preço das hortaliças. Ou a Embrapa poderia calcular a dieta de preço mínimo que cobrisse 2.000 calorias por dia com diversos produtos substituíveis entre si. O índice incluiria apenas o preço desta salada de custo mínimo --sobe o chuchu, substitui-se o preço do chuchu pelo preço da abobrinha.

Fica faltando estabilizar o preço da energia elétrica, que oscila com a chuva, e o da gasolina, que foi congelado. Aqui, a falta de chuva aumenta salários, juros e aluguéis, quando, de fato, deveriam ser reduzidos, para que gastassem menos água e menos energia.

O Banco Central toma decisões a partir da inflação corrente e da "core inflation", a taxa de inflação que exclui elevações episódicas de preços como o do chuchu. Mas os preços mais sensíveis às taxas de juros são exatamente os preços de mercados competitivos excluídos da "core inflation", como o mercado de hortaliças, câmbio e ações.

Uma proposta de reforma seria fixar as taxas de juros olhando para a inflação medida pelo índice cheio, sem correções, isto é, a inflação medida com todos os aumentos episódicos e imprevisíveis, como os preços da salada. Pois os aumentos episódicos de preços ocorrem exatamente com os produtos vendidos em mercados competitivos, que são mais sensíveis ao aumento dos juros.

Por outro lado, a indexação só seria admitida em lei se fosse usada a "core inflation", a medida de inflação descontados esses aumentos episódicos. Proposta difícil --no passado, as tentativas de utilizar um índice de preços "alisado" pela exclusão dos preços que subiram porque a oferta se reduziu, como o do petróleo e o do chuchu, foram chamados de "expurgos" (palavra aparentada de "pus") e duramente criticados.

E a taxa de câmbio? Chove pouco, o preço do tomate sobe, a inflação sobe, e o Banco Central aumenta a taxa de juros. Com juros maiores, entram dólares no país, o dólar cai, e a indústria sofre. O país fica mais caro, pois o dólar fica mais barato. Os preços industriais brasileiros perdem para os preços dos importados. O tomate desindustrializa o país.

O regime de metas é desestabilizador. Quando corrige a inflação, cria problemas no balanço de pagamentos. Quando corrige o câmbio, cria problemas na inflação.

O novo governo deveria fixar juros olhando para os juros internacionais e fixar a taxa de câmbio num nível tal que o hambúrguer do McDonald's brasileiro tenha o mesmo preço do sanduíche nos EUA, para controlar a inflação. Se anunciasse essa mudança, o país se tornaria ovelha negra de alto risco nos mercados internacionais.

É preciso cuidado para evitar as fogueiras que seguem acesas nos tempos pós-modernos para queimar quem ameace mitos sagrados. Para que a pretensão de manter 10 mil preços diferentes subindo lentamente se atinja de forma menos bárbara.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página