Saltar para o conteúdo principal Saltar para o menu
 
 

Lista de textos do jornal de hoje Navegue por editoria

Ilustrissima

  • Tamanho da Letra  
  • Comunicar Erros  
  • Imprimir  

Arquivo Aberto

MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Meu filme com Moacyr Scliar

Rio de Janeiro, 1993

ANDRÉ STURM

Em 1993, com o cinema brasileiro "adormecido", após a hecatombe Collor, o ministro da Cultura, Antonio Houaiss (1915-99) lançou um concurso que ficou conhecido como Resgate do Cinema Brasileiro. Como a expectativa era enorme ele criou uma comissão formada por representantes de todas as áreas da atividade para discutir as regras. Acabei fazendo parte, representando os curta-metragistas.

De maneira inovadora, Houaiss nomeou para a comissão seis intelectuais, escritores de diversas parte do país. Entre eles Moacyr Scliar (1937-2011) e Márcio Souza. As reuniões aconteciam no Rio, no palácio Capanema, ao longo de dois dias, com intervalo de poucas semanas. Com isso tive o prazer de conviver com esses grandes escritores nos cafés da manhã no hotel e nos intervalos das "batalhas".

As discussões eram intensas e, muitas vezes, calorosas. Os interesses entre os setores da classe eram grandes, e as disputas, idem. Finalmente chegou-se ao ponto principal: como seriam julgados os projetos. A turma dos grandes produtores apresentou a proposta de que isso fosse feito de maneira muito objetiva, por meio de uma pontuação a ser dada a alguns itens, com pesos específicos. Currículo da produtora e do diretor pesariam enormemente e, se fosse uma obra adaptada de escritor brasileiro, peso extra. Fui radicalmente contra a proposta, que claramente pretendia beneficiar os produtores tradicionais em detrimento dos estreantes.

A discussão ficou muito quente, com palavras fortes. Era visível que a bancada dos escritores estava bastante confusa e até temerosa. Uma verdadeira guerra havia se formado: de um lado, eu e o Zé Antonio Garcia (que representava os cineastas independentes); de outro, três produtores tradicionais. Junto a mim estava sentado o Moacyr. Num certo momento, ele me pergunta baixinho: "Porque tu és contra a pontuação? É um sistema mesmo mais objetivo".

Respondi explicando que, nessa hipótese, um projeto de um produtor tradicional, a ser dirigido por um cineasta com filmes em seu currículo, baseado num livro brasileiro, nem precisaria enviar roteiro. Já estaria pré-aprovado com os pontos que obteria. E que, de outro lado, um cineasta estreante, premiado em festivais de curtas, que tivesse montado uma pequena produtora, mesmo que enviasse um roteiro incrível jamais ganharia. E dei o exemplo da Casa de Cinema de Porto Alegre com o Jorge Furtado e seus curtas sensacionais.

"Tu tens toda a razão, guri!". Ele então virou para o outro lado, onde sentava o Márcio Souza, e perguntou o que ele achava. O Márcio respondeu, meio na dúvida, que a proposta da pontuação parecia mais objetiva, ao que o Moacyr disse: "Não é não. Deixa te explicar". E foi lá convencer o Márcio do contrário. Após mais alguns debates calorosos, o assunto e os presentes à sala estavam esgotados. Decidiu-se então votar, temerosamente. Resultado: 4 a 3 contra a pontuação, com quatro abstenções (dos escritores). Moacyr e Márcio votaram juntos: o gaúcho não apenas tinha nos apoiado como convencera o colega.

Meses depois a comissão julgaria os projetos de filmes como "Os Matadores", "Baile Perfumado" e "Carlota Joaquina", de cineastas estreantes à época, que foram aprovados e receberam recursos importantes, possibilitando sua realização. Sem isso, talvez viessem a ser feitos, mas teriam demorado alguns anos mais.

Isso foi possível graças à compreensão do Moacyr de uma situação aparentemente confusa e de sua coragem em tomar partido contra os tradicionais donos do cinema brasileiro e em favor dos jovens.

Alguns anos mais tarde, eu procurava assunto para fazer meu primeiro longa e li um artigo do Moacyr sobre a Revolta da Vacina, que mencionava o livro "Sonhos Tropicais", de sua autoria. Devorei o livro e tinha descoberto o que eu queria filmar. Procurei o Moacyr, que lembrava de mim muito generosamente e me deu dois anos para eu conseguir levantar recursos e poder pagá-lo pelos direitos.

Já com o roteiro sendo escrito, em 1997, ele me presenteou com um exemplar de "O Círculo das Águas" e escreveu uma dedicatória encorajadora. Guardo Moacyr Scliar para sempre na memória.


Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página