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O tímido Dr. Bashar

Pessoas que conviveram com o ditador sírio quando ele ainda estudava medicina em Londres guardam na memória um jovem discreto e avesso à política

LEANDRO COLON DE LONDRES

Hoje, ele é Assad, ditador da Síria acusado de cometer crimes de guerra, violar as leis internacionais, assassinar milhares de civis e usar armas químicas para eliminar adversários.

Em Londres, há cerca de 20 anos, era só Bashar, um médico sírio de 27 anos que decidiu se mudar para a capital britânica, alugar um apartamento e estudar no Western Eye Hospital, especializado em saúde dos olhos, na região de Paddington.

Discreto, pontual e tímido, o jovem de corpo franzino mostrava na sala de aula apreço por tecnologia de computadores. Tinha gosto pelo britânico Phil Collins e pela americana Whitney Houston, que acabara de estourar com o filme "O Guarda-Costas".

A Folha visitou o Western Eye Hospital, onde ele estudou de 1992 a 1994, e também procurou em Londres quem conviveu com o então futuro ditador naqueles anos de aprendizado médico.

Segundo colegas, Bashar não mencionava o sobrenome, não falava de política nem da família e escondia ser filho de Hafez al-Assad, então ditador sírio, que tomou o poder a partir de 1970 num golpe armado. Já pesava contra Hafez, por exemplo, o massacre de Hama, em 1982, quando entre 20 mil e 40 mil pessoas morreram.

Bashar al-Assad desembarcou em Londres quatro anos depois de se formar em medicina pela Universidade de Damasco. Decidiu se especializar em oftalmologia na capital britânica e dizia que voltaria à Síria para trabalhar como médico.

"Ele trabalhava muito, era dedicado, competente. Era um aluno com uma boa média", disse à Folha o médico e cientista John Hardy, que foi seu tutor no curso em Londres.

Alguns aceitaram falar publicamente, como o professor John Hardy; outros conversaram com o jornal, mas pediram reserva. Alegaram certo receio em aparecer no momento em que o governo do Reino Unido considera o ditador sírio um inimigo a ser batido.

Nas conversas, duas coisas em comum: ele nunca contou de quem era filho no período londrino, e o Assad de agora assusta demais quem o conheceu lá atrás.

Afinal, como aquele homem educado, reservado, dedicado à medicina, se transformou num ditador capaz de massacrar civis, como relata a ONU (Organização das Nações Unidas), e até mesmo usar armas químicas, como acusam os Estados Unidos?

"Eu fui o tutor dele no grupo de bioquímica do hospital por dois anos. Eram duas horas a cada duas semanas, e eu não sabia que ele era filho do presidente Hafez al-Assad", contou Hardy. "Ele não falava sobre isso, era modesto, não tinha intenção de ser presidente", disse.

Colegas lembram dele pela dedicação a cirurgias de emergência na incisão e drenagem de cistos nas pálpebras. Tinha potencial para ser um cirurgião de primeira, garantem.

Nos corredores do hospital, a Folha encontrou o enfermeiro Michael Kodzo, que ganhou fama entre os funcionários por ter sido colega do ditador sírio 20 anos atrás. Ele também o descreve como um homem "reservado" e que não dava sinais de ligação com a ditadura na Síria. E garante: "Ele era meu amigo".

O enfermeiro, que cuida de exames preliminares dos pacientes, interrompeu logo a conversa com a reportagem. Alegou que só poderia dar entrevistas com o aval do hospital. Demonstrou até ter medo do ditador.

"Ele [Assad] é presidente, homem poderoso, preciso do emprego. E ele pode mandar me matar", disse. Procurada, a direção do hospital, sem justificativa, não deu a autorização.

A última vez que Kodzo encontrou Assad foi há pouco mais de dez anos, em dezembro de 2002, quando o sírio visitou Londres, a convite do governo do Reino Unido.

Desta vez presidente, ele aproveitou para visitar o hospital onde estudara. Reconheceu o médico Philip Bloom, prestigiado oftalmologista britânico, que hoje evita falar do antigo colega.

O ditador foi ainda recebido em Downing Street pelo então premiê Tony Blair. Foi aí que o professor John Hardy percebeu para quem tinha dado aula.

"Descobri ao vê-lo um dia na TV, com Tony Blair, dizendo que invadir o Iraque era uma má ideia, com consequências imprevisíveis", contou. Assad visitou até a rainha Elizabeth 2ª na ocasião, tornando-se o primeiro presidente sírio a ter uma audiência com ela.

No período de estudos em Londres, ele também conheceu a bela britânica, então com 18 anos, Asma Fawaz al-Akhras, filha de um prestigiado cardiologista sírio baseado em Londres. Com ela, Assad se casaria em 2000 e teria três filhos depois.

PRESIDENTE POR ACASO

No roteiro planejado por seu pai, ele jamais o teria sucedido no comando político da Síria. O cargo estava sendo reservado para Basil, seu irmão mais velho, apontado como sucessor natural do ditador Hafez.

Bashar al-Assad não tinha muito apego à política quando vivia em Londres. Elogiava de vez em quando a conservadora Margaret Thatcher, que deixou o cargo de premiê britânica naquela época.

Mas, em 1994, o irmão de Bashar morreu num acidente de carro a caminho do aeroporto de Damasco. Ainda em Londres, ele foi chamado às pressas para voltar à Síria. Teria de se preparar para ser de fato o herdeiro político da família, algo que nunca quis.

Ao deixar o Reino Unido, informou aos mais próximos que perdera um irmão no desastre e que precisava voltar para casa e ajudar a família.

Bashar al-Assad chegou a Damasco e começou a traçar o caminho para um dia substituir o pai. Entrou logo na Academia Militar de Homs, virou coronel e braço direito de Hafez al-Assad. Em junho de 2000, um ataque cardíaco matou o então ditador sírio, 30 anos depois do golpe.

Seu substituto deveria ter ao menos 40 anos, segundo as regras da época. Bashar al-Assad ainda estava com 34. Mas resolveram rápido esse "detalhe".

Em poucos dias, o Parlamento sírio alterou a lei e Assad foi declarado líder do partido Baath, dominado pelos alauitas, ramo islâmico ao qual pertence a família do ditador e que representa 12% da população síria. Eleito presidente, Assad assumiu o comando do país em julho daquele ano. E nunca mais saiu.


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