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Fundação de caridade iraniana é desafio para presidente moderado
Instituição, que controla império econômico no país, é vista com desconfiança pelo Ocidente
Ligada ao líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, a Bonyad Mostazafan é ainda acusada de ineficiência
Construído numa montanha 30 km a leste de Teerã, o complexo Imã Khomeini tem salas de aula, biblioteca e instalações esportivas.
Numa manhã recente das férias escolares, o local fervilhava com centenas de crianças e adolescentes, que se dividiam entre oficinas de arte, gincanas de química e uma partida de paintball.
"Minha atividade preferida é a aula de cerâmica", disse Parisa, 14, que vem de uma família carente do interior e ficou uma semana hospedada no complexo, com todas as despesas pagas.
Parisa é um dos milhões de beneficiários da Fundação dos Oprimidos (Bonyad Mostazafan, em farsi), maior organização caritativa do Irã, subordinada ao líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.
Além de administrar o complexo Imã Khomeini, a fundação estatal fornece bolsas de estudos, distribui pensão a veteranos da guerra contra o Iraque e promove mutirões sanitários, incluindo programas pré-natal, em comunidades carentes do Irã.
Mas tem também outra faceta, mais polêmica, que desafia o novo presidente do país, Hasan Rowhani.
PATRIMÔNIO
A Bonyad Mostazafan controla uma colossal rede de empresas e investimentos, que forma uma das maiores holdings do Oriente Médio, com patrimônio avaliado em US$ 3 bilhões (R$ 6,7 bilhões).
Blindada contra auditorias independentes graças à sua ligação com o líder supremo e isenta de impostos por ter status caritativo, ela atua em todos os setores da economia.
O banco Sina é propriedade da Bonyad Mostazafan, assim como a construtora Omran Maskan, o hotel Azadi, o mais luxuoso de Teerã, e a fábrica da Zam Zam Cola, concorrente local da Coca Cola.
São cerca de 350 empresas e filiais com participação da fundação, gerando 200 mil empregos diretos e indiretos.
O volume se consolidou a partir de 2005, quando a fundação arrematou estatais, num reflexo do peculiar sistema iraniano em que a abertura de capital beneficia grupos ligados ao governo, formando empresas "semi-privadas".
"É uma holding com braço caritativo, e não uma organização caritativa que tem uma holding", diz Kevan Harris, da Universidade Princeton.
O diretor de relações públicas da fundação, Sayed Hossein Sajjadi, alega que o braço empresarial atende programas sociais.
"Nossas missões de combate à pobreza são cumpridas graças à renda obtida por meio dos investimentos", disse o porta-voz da fundação criada após a revolução de 1979, sobre os escombros de um grupo de caridade ligado à monarquia deposta.
OPACIDADE
Mas a dimensão tentacular da organização, conjugada à sua opacidade, vai de encontro à modernização defendida por Rowhani.
O presidente, eleito em junho, até agora se absteve de citar nominalmente a fundação, mas sua estratégia consiste em deixar o setor privado livre da concorrência desleal de organizações estatais.
O gigantismo da Bonyad Mostazafan alimenta acusações de ineficiência e corrupção, difíceis de comprovar pela falta de monitoramento.
"A maioria das subsidiárias sofre da falta de produtividade e eficiência", diz Cyrus Razzaghi, da consultoria Ara Enterprise. Um empresário que lida com a fundação queixa-se da burocracia.
"Tem gente e negócios demais. É uma bagunça".
Boa parte dos iranianos preza os programas sociais da Bonyad Mostazafan, mas a organização às vezes é vista como cabide de empregos.
Ela sofre ainda com a concorrência de novos atores econômicos, também beneficiados com as privatizações.
"Forças rivais, como a Guarda Revolucionária, controlam grandes negócios nas áreas de infraestrutura, construção e comércio", diz Razzaghi, numa referência ao braço militar de elite do Irã, outro grupo semi-privado.
Apesar de a guarda ser concorrente, a fundação também tem elos com os generais. O atual diretor, assim como seu antecessor, eram altos integrantes da elite militar.
DESCONFIANÇA
Setores de inteligência no Ocidente acusam a Bonyad Mostazafan de acobertar apoio do país ao grupo libanês Hizbullah e aquisição clandestina de material para o programa nuclear iraniano.
As alegações, negadas pelo Irã, aumentam a pressão para que Rowhani se distancie das organizações, já que ele prometeu melhorar laços com o Ocidente.
Questionado sobre eventuais mudanças sob o novo governo, o porta-voz foi evasivo: "todos têm direito de palpitar sobre a fundação, principalmente o presidente".
O analista Harris especula que Rowhani tentará se desfazer do patrimônio da fundação, mas irá esbarrar no mesmo problema levantado com as privatizações: a predominância estatal na economia.
"Onde está esse setor privado que os iranianos tanto comentam?".
À Folha, um ex-dirigente da fundação descartou mudanças. "É área reservada do líder supremo. Mesmo que haja problemas, o presidente não tem o que dizer".