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Depoimento

Cadáveres na frente do hotel

Enviado da Folha relata terror do conflito em Kiev, marcado por insegurança, falta de informação e acusações contra o governo

DIOGO BERCITO ENVIADO ESPECIAL A KIEV

Os repetidos embates entre forças de segurança ucranianas e manifestantes da oposição, em Kiev, golpearam o humor na cidade com as notícias de dezenas de mortos desde a terça-feira.

Se a capital ucraniana me recebera há um mês com as histórias de convivência e cooperação na praça da Independência, em que os conflitos fatais eram raros, ontem as boas-vindas foram outras: cinco cadáveres na porta do hotel, pela manhã.

Os corpos que vi ao descer do táxi, vindo do aeroporto, foram encaminhados para serem tratados em um hospital improvisado, na periferia dos protestos. Enquanto eu me registrava na recepção, mais mortos foram estendidos no chão, somando então 12, como testemunhas de que o conflito na Ucrânia havia chegado a um novo período.

A trégua recém-declarada parece ser feita de papel, e as ruas de Kiev estão desconfiadas. O telhado do hotel em que estou hospedado foi revistado por opositores, durante o dia, devido aos rumores de que abrigava franco-atiradores do governo.

Por toda a praça eram frequentes os relatos de manifestantes mortos por disparos desses atiradores, a exemplo dos corpos deitados na frente do meu hotel, mais tarde recolhidos dali por uma ambulância. Nas ruas, alguns manifestantes ainda trazem os rostos feridos pelos embates, com olhos vermelhos ou as roupas ensanguentadas.

O advogado Ostap Prots diz ter sido atingido na cabeça por uma bala de borracha durante uma manifestação rumo ao Parlamento. O rosto dele está inchado. "Os policiais são treinados para atirar no olho", diz, vestindo um colete à prova de balas.

Os repórteres internacionais, que há um mês circulavam pela praça, agora se amontoam nos saguões dos hotéis, transmitindo suas reportagens de dentro dos quartos. Mais do que a insegurança real, a falta de informações contamina o clima.

Na rede social Twitter, ativistas publicam histórias, fotografias e vídeos sobre a calamidade na rua. Não é possível verificar as informações, que em parte contribuem para a histeria.

Com um aviso do governo orientando cidadãos a evitar o centro da cidade, em que restaurantes e lojas estão fechados, as ruas de Kiev dão conta da situação dramática a que foi empurrada. Há interrupção também no serviço de bancos e falta de dinheiro em caixas eletrônicos.

Também grave para a população é a interrupção no serviço de metrô, um dos principais meios de locomoção na cidade, tanto para quem vai aos protestos quanto para quem tem de trabalhar.

"Nosso governo é criminoso", diz à Folha um médico que prefere não se identificar. Ele tem tratado manifestantes feridos. "Se eles forem aos hospitais oficiais, vão ter problemas com a polícia."

Os corpos expostos no centro de Kiev parecem, segundo os médicos voluntários, ter sido vítimas de disparos. Diversos foram atingidos no pescoço, o que pode fortalecer o argumento de que foram mortos por franco-atiradores.

Vídeos e fotos divulgados na internet mostram cenas em que as forças de segurança reagem contra manifestantes. Em uma imagem, um grupo de opositores avança sob proteção de escudos quando é atingido por disparos.

"O governo quase certamente usou força letal durante a crise civil", afirma à Folha Nic Jenzen-Jones, diretor da Armament Research Services, que tem pesquisado o uso de armamentos no país --incluindo munições projetadas para o disparo contra veículos, e não pessoas.

"Nós documentamos até quatro tipos diferentes de munição letal. Além disso, dispositivos incendiários improvisados [coquetéis molotov] têm sido usados tanto por manifestantes quanto pelas forças de segurança."

Para o padre greco-católico Ivan Shemet, que dirigiu ontem por 12 horas para ir a Kiev testemunhar os protestos, as manifestações na Ucrânia --assim como os sacrifícios, incluindo as mortes-- são uma espécie de oferenda no "altar" da nação.

Assim como outros religiosos, Shemet acredita que é dever dos representantes da igreja estar entre os seus fiéis, nas ruas. "Chegou o momento de oferecermos alguma coisa para termos um Estado livre", diz, referindo-se à influência de Moscou no país. É a fé por tempos melhores.


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