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Inferno a bordo

Há 110 anos, barco com 1.358 passageiros pegou fogo em Nova York; foi a pior tragédia da cidade até o 11 de Setembro

ANÉLIO BARRETO COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O 15 de junho era um dia de verão perfeito, com céu azul, sol brilhando, alegria a bordo, crianças correndo em suas explorações, uma bandinha alemã tocando.

A igreja havia pago US$ 350 pelo aluguel do barco, e os ingressos, aproximadamente mil, foram vendidos somente para adultos. Crianças tinham acesso livre, e as mães as levavam ou pediam a amigas que as acompanhassem. Foram mais de 300.

O General Slocum partiu do píer da rua 13 Leste, em Nova York, pouco depois das 9h. Seu destino era um ponto de piquenique em Long Island. Todos estariam de volta às suas casas às 23h.

Isso nunca aconteceu --o barco pegou fogo no trajeto.

Os Addick estavam a bordo. Ernst, 37, nascido na Alemanha, dono de uma loja de guloseimas, e sua mulher, Anna Stuve Addick, 33; a sogra, Margaret Stuve, 65; os filhos John, 16, Margaret, 12, Martha, 11, Annie, 7, e Ernst, 5. Havia ainda Margaret Heidkamp, 13, filha adotiva.

O garoto Charles Schwarts Jr., 18, aprendiz de mecânica, um dos muitos que correram para ajudar, contou:

"A primeira pessoa que vi foi a senhora Addick. Eu a socorri mantendo seu queixo fora da água e puxando seu corpo. Chegou à praia bem, não estava muito ferida. Atirou seus braços em volta de meu pescoço e me deu um beijo."

A primeira lista de mortos traria as duas Margaret --Addick, 12 e Heidkamp, 13-- e John, 16. Em lista posterior estava Martha, 11. Como desaparecida, Mary, 9, e hospitalizados, Annie, 7, e Ernst, 5.

As relações de mortos e desaparecidos são inúmeras e incompletas. Uma das sobreviventes, como conta J. S. Ogilvie em seu livro "História do Desastre do General Slocum", foi Lena De Luccia, 29, que levou para o passeio seus quatro filhos, entre 2 e 12 anos: Agnes, Frank, Nicholas e Rose.

De Luccia morava no número 54 da rua 7 e convenceu a vizinha do apartamento em frente ao seu, Sophie Siegel, recém-casada, a acompanhá-la. A senhora Galefsky, do andar abaixo, também decidiu ir, e levou seus dois filhos. Apenas De Luccia voltou.

Das 1.358 pessoas a bordo, muitas não sabiam nadar ou não conseguiam atirar-se na água. No total, o incêndio, ocorrido em 15 de junho de 1904 --há 110 anos, portanto-- no East River, em Nova York, deixou 1.021 mortos.

Foi o mais terrível acontecimento naquela cidade até os atentados de 11 de setembro de 2001, que mataram 2.753 pessoas em Nova York.

Construído em 1891, o PS General Slocum era um barco a vapor --com duas hélices de 26 remos cada dispostas nas laterais -- normalmente alugado por grupos que saíam a passeio.

Naquele dia ele deveria levar convidados da Igreja Luterana São Marcos, do reverendo George Van Haas, a um piquenique comemorando o final do ano letivo no norte de Long Island.

Mesmo antigos moradores que haviam se transferido para o Brooklyn, Yorkville e Nova Jersey se juntaram à excursão. Houve ainda os que não quiseram ir, temerosos depois de incidentes anteriores.

Em julho de 1894, o General Slocum atingira um banco de areia; no mês seguinte, houve um baque contra Coney Island; em setembro, uma colisão com o rebocador R. T. Sayre; em 1898, outra colisão, com o barco Amelia; e, em junho de 1902, ele atolara com 400 passageiros.

Mas, naquela quarta-feira, tudo parecia normal e a maioria dos passageiros eram mulheres e crianças vestidas com suas melhores roupas, oriundas principalmente de Little Germany.

No lado leste, ao sul de Manhattan, Little Germany foi o destino de milhares de imigrantes alemães que começaram a instalar-se ali em 1840.

Cinco anos depois, já era a maior comunidade de Nova York. No início do século 20, chegou ao total de 50 mil habitantes.

O local praticamente acabou quando o General Slocum matou aquelas 1.021 pessoas, e as famílias e amigos delas foram saindo dali.

Voltemos a Lena De Luccia. Ela contou que estava no deck principal (havia três no total), próxima à caixa de uma das hélices, quando viu fumaça e chamas.

Pegou no colo o pequeno Nicholas, 2, e, com as outras crianças, agarrou-se ao corrimão. Disse que vários homens por ali gritavam que não havia perigo.

"Um grupo enorme de mulheres frenéticas me empurrou para o mar. Perdi Nicholas e não vi mais meus outros filhos. A senhora Siegel caiu ao meu lado, mas não a vi voltar à superfície", relatou.

"As máquinas do Slocum pararam e eu me agarrei à hélice. A hélice queimou, e o ferro ficou tão quente que cobriu minhas mãos de bolhas. Então um barco me pegou."

O escritor Glenn Stout também contou a história do desastre em seu livro "Young Woman And The Sea".

"Pouco depois das 10 horas, um garoto que explorava o deck inferior (...) sentiu cheiro de fumaça. Vivendo em um cortiço, onde um pequeno fogo podia se espalhar rapidamente, até as crianças estavam atentas a qualquer centelha. Ele percebeu que havia algo errado, e então viu fumaça saindo de uma escada. Girou nos calcanhares e foi em busca de alguém da tripulação. Encontrou um marinheiro e o levou até a porta."

"O inexperiente marinheiro cometeu um erro enorme: abriu a porta. O fogo, que apenas começava, foi alimentado pela nova dose de oxigênio e ganhou vida."

"O capitão William Van Shaick, olhando da cabine de comando, sabia que havia fogo a bordo, mas via apenas fumaça, e então cometeu seu erro fatal: ao invés de dirigir o navio para um dos decks ao lado do rio, resolveu seguir em frente e aportar em North Brother Island, mais de uma milha adiante."

"Não se sabe o ponto exato em que estava o navio quando o fogo começou. Ele havia acabado de passar Hell Gate, em frente ao Queens, e as pessoas na margem não perceberam qualquer sinal de pânico. Ao contrário, viram uma grande festa, a banda tocando e muita diversão."

O grito de fogo foi ouvido quando o Slocum estava na altura da rua 131. O jornal "The New York Times", que publicou um grande relato na época, conta que foi ouvida imediatamente uma explosão abafada e um lençol de chamas envolveu a parte dianteira do navio. Na altura da rua 135, o incêndio foi visto pelas pessoas em terra.

Conta o jornal: "Imediatamente o pandemônio se instalou a bordo. As chamas, espalhando-se com incalculável rapidez, impeliram os passageiros para a traseira do navio. O capitão Van Schaick foi visto correndo da cabine de comando após passar o timão para um de seus copilotos e gritar para que levasse o barco para a North Brother Island."

"A tripulação não tentou manter qualquer ordem no pânico que se desenvolvia. De acordo com alguns marinheiros sobreviventes, a mangueira contra incêndio estava boa (embora outros tenham dito que ela havia apodrecido), e eles correram para seus postos, mas mesmo que tenham feito isso seria o mesmo que tentar apagar uma caldeira de óleo com um revolverzinho de esguicho."

Foi então uma corrida aos salva-vidas, mas eles estavam podres e se desmanchavam. Muitas mães os colocaram em seus filhos e os jogaram ao mar, para ver, em desespero, que as crianças afundavam.

Quando o Slocum chegou à ilha, foi em um ponto em que as águas são profundas e não há praia, só rochas. Com o baque, os decks superiores cederam e despejaram os passageiros em uma enorme fogueira. O terrível coro a bordo, de desespero, era ouvido da margem em Nova York.

Muitas histórias de heroísmo foram contadas. O rebocador Wade, do engenheiro de bordo John Wade, e comandado pelo capitão Robert Fitzgerald, salvou 155 pessoas. O Wade estava no píer de North Brother Island. Ele zarpou e permaneceu ao largo enquanto o navio se aproximava. Dúzias de mulheres e crianças foram literalmente pescadas para o seu convés.

O bombeiro Edward Carrol, que estava a bordo, saltou para a água em busca de crianças que se debatiam. Ele conseguiu agarrar três, mas foi obrigado a abandonar uma para salvar as outras duas. Depois de colocá-las no Wade, voltou para as outras e conseguiu salvar mais seis.

A tripulação do rebocador viu um policial, que foi o primeiro a chegar à ilha, salvar 11 pessoas. Quando tentava salvar a décima segunda, uma mulher, suas forças se esgotaram e ele afundou.

James F. Gaffney, engenheiro na ilha, viu o incêndio, chamou os bombeiros e entrou no mar com uma mangueira. Vendo que ela era inútil, abandonou-a e nadou até uma senhora que se debatia.

Ele a trouxe para a ilha e, com cinco outros homens, deram-se as mãos e formaram uma corrente humana. No total, 50 foram salvos por eles.

Dos oito indiciados após o desastre, apenas o capitão Van Schaick foi condenado, por "negligência criminal". O presidente em exercício, Theodore Roosevelt, negou-lhe o perdão, e ele recebeu pena de dez anos de prisão em Sing-Sing. Cumpriu três.

Foi perdoado por William Howard Taft, que assumiu a Presidência em 1909.

Adella Wotherspoon tinha seis meses de vida quando o General Slocum pegou fogo, e perdeu nele duas irmãs. Viveu cem anos, acompanhou a tragédia do Titanic, em 1912, quando os mortos foram 1517, e comentou:

"Havia muitos passageiros ilustres. Aqui foi apenas um piquenique familiar."

Quando ela completou um ano, desvendou um monumento às vítimas no Thompkins Square Park, mandado erigir pela Sympathy Society of German Ladies. No mármore, está gravado:

"Eram as mais puras crianças da Terra, jovens e boas".


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