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Clóvis Rossi
Enfermos de violência
Uma assustadora epidemia, que os diferentes governos da América Latina não sabem como enfrentar
Resumo texto divulgado na semana passada:
"São numerosas as formas de violência que a sociedade sofre diariamente. Muitos vivem com medo de entrar ou sair de casa ou temem deixá-la sozinha, ou estão intranquilos esperando o regresso dos filhos do estudo ou do trabalho. Os delitos não somente aumentaram em quantidade, mas também em agressividade. Uma violência cada vez mais feroz e impiedosa provoca lesões graves e chega, em muitos casos, ao homicídio. É evidente a incidência da droga em algumas condutas violentas e no descontrole dos que delinquem, nos quais se nota escassa e quase nula valorização da vida própria e da alheia."
Você mesmo já deve ter dito algo parecido em algum bate-papo com amigos e parentes em São Paulo ou no Rio, certo? Ou certamente já leu ou ouviu textos parecidos em jornais brasileiros ou em emissoras de rádio/TV, certo?
Mas o texto que resumi não se refere ao Brasil. Foi emitido na semana passada pela Conferência Episcopal Argentina, para calçar sua avaliação de que a Argentina está "enferma de violência".
Impressiona o fato de que o que a igreja diz sobre o vizinho aplica-se ao Brasil, palavra por palavra, medo por medo, vírgula por vírgula.
A rigor, a "enfermidade da violência" no Brasil é ainda mais grave. No mais recente levantamento das Nações Unidas que permite comparações (relativo a 2012), vê-se que o número de assassinatos por 100 mil habitantes no Brasil (25,2) é praticamente cinco vezes maior do que na Argentina (5,5).
Mas o que mais impressiona é o fato de que os governos, em toda a América Latina, não conseguem enfrentar adequadamente a enfermidade. É bom lembrar que, das 50 cidades acima de 300 mil habitantes incluídas na lista da ONU, 43 se encontram na América Latina (16 no Brasil, o maior número).
Da inadequada posição dos governos, dá testemunho a reação do governo argentino à nota dos bispos: lembrou que a igreja local fora omissa durante a violência praticada pela ditadura militar do período 1976/83. É verdade que houve uma imperdoável omissão, tema que já tratei aqui quando da eleição de um cardeal argentino, Jorge Mario Bergoglio, para o papado.
Mas seria muito pior se a igreja repetisse a omissão agora que a violência comum, em vez do terrorismo de Estado da ditadura, se tornou tão grave.
No Brasil, a reação dos governantes a um cenário ainda mais enfermo é pior ainda, se possível: o governo paulista, por exemplo, faz propaganda na TV para se gabar de que, das 16 cidades brasileiras incluídas entre as mais violentas, nenhuma fica em São Paulo.
E daí? Significa que o Estado é um oásis de paz? Caramba, se há 37 roubos por hora (por hora, repito), como é possível orgulhar-se de que não há cidades paulistas entre as mais violentas?
Será que o governo pensa que os paulistas são tontos o suficiente para aceitar a propaganda enganosa em vez de acreditar nas suas próprias sensações, tão bem expostas, por notável coincidência, na nota dos bispos argentinos?