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New York Times

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Céu e terra travam batalha em festival nos Andes

Por WILLIAM NEUMAN

COYLLURQUI, Peru - Não é fácil amarrar um condor selvagem com envergadura de dois metros e bico afiado às costas de um touro de meia tonelada.

"O touro e o condor não são animais que têm boas relações, digamos", comentou Luis Bocangel, que ajudou a promover a união temporária das duas espécies na festa anual de verão conhecida aqui como Yawar Fiesta, ou Festa do Sangue.

"O touro tem muito medo do condor", disse Bocangel, irmão do prefeito de Coyllurqui. "O condor tenta bicar os olhos do touro." Depois de amarrados juntos, os dois animais são soltos numa praça para brigar entre eles e com um grupo de toureadores. É a maior atração dessa festa tipicamente andina, que acontece todos os anos em 29 de julho, o dia após o Dia da Independência peruana, em algumas cidades pequenas no alto da cordilheira.

"O apu é a ave sagrada dos Andes", disse o prefeito, Walter Bocangel, usando uma palavra que significa "deus" na língua indígena local, o quéchua.

Em Coyllurqui, cidade situada numa encosta íngreme a 3.100 metros de altitude, onde o céu azul parece especialmente perto, muitos moradores creem que o condor, uma das maiores aves do mundo, tem status divino.

"A justaposição do condor e do touro simboliza a dualidade do mundo andino: o mundo celestial e o mundo terreno", explicou Juan Ossio, professor de antropologia na Pontifícia Universidade Católica do Peru, em Lima. Ex-ministro da Cultura, Ossio diz que a tourada corresponde a uma visão andina da dualidade do mundo que data dos tempos pré-colombianos. A união do condor e do touro, do céu e da terra, diz ele, é um ritual que recria a inteireza da comunidade.

Segundo a versão popular, a festa data do período colonial e foi criada como maneira de a população indígena local expressar sua raiva dos conquistadores espanhóis. Ao colocar o condor andino sobre o touro espanhol, os indígenas podiam subverter sua subjugação, pelo menos simbolicamente.

Outros dizem que a festa está ligada à luta peruana pela independência, que culminou em 1824 com a batalha de Ayacucho. Para festejar a vitória, diz a história, o condor, essencialmente peruano, foi posto sobre o touro imperial para atormentá-lo, como uma bandarilha viva.

Neste ano, dois condores foram capturados em Coyllurqui. Cavalos mortos foram usados como iscas para atrair os condores, que consomem carniça.

Na praça de touros, os condores foram levados numa volta pela arena, lotada com milhares de espectadores. A maioria das pessoas era de Coyllurqui e das comunidades vizinhas, mas alguns ônibus tinham vindo de Cuzco trazendo turistas.

"Yawar" significa "sangue" em quéchua, e muitas pessoas dizem que o nome da festa se deve ao sangue derramado pelos toureiros amadores, frequentemente embriagados.

O nome vem do romance de 1941 "Yawar Fiesta", do escritor peruano José María Arguedas, que retrata uma festa semelhante. Até 20 anos atrás, os moradores de Coyllurqui chamavam sua festa pelo nome quéchua "turupukllay", que pode ser traduzido como "jogo de touros".

Neste ano, o prefeito contratou toureiros profissionais. Ele os orientou a não usar roupas coloridas tradicionais, e eles executaram suas manobras com pouca graça.

Então foi hora do evento principal. O condor foi trazido para a arena. Era uma fêmea. Suas pernas foram enfaixadas e amarradas às costas de um touro negro. O touro começou a correr pela arena, dando pinotes. A ave, assustada, batia as asas e bicava as costas do touro. Correndo para um lado e outro sob as asas agitadas, o touro parecia estar voando. Depois de algum tempo, condor e touro começaram a parecer não tanto adversários quanto aliados relutantes.

Embora não tenha sido vertido muito sangue, alguns ambientalistas pedem uma lei que proíba o uso de condores na Yawar Fiesta. A União Internacional para a Conservação da Natureza classifica o condor andino como "perto de estar ameaçado", dizendo que sua população total em toda a América Latina é provavelmente superior a 10 mil aves, mas está em declínio.

Mas o prefeito disse que a cidade não vai abrir mão da tradição. "As pessoas vêm para cá para ver o condor." Há mais que uma questão econômica em jogo. Se os condores são feridos ou mortos, isso é visto como mau agouro.

No último dia da festa, os condores foram levados a uma encosta de montanha onde centenas de pessoas estavam reunidas. "A comunidade faz desejos, e o condor torna-se portador de seus desejos", explicou Ossio.

Depois de orações e oferendas, foram retiradas as cordas amarradas às patas das aves. "Libertem-nas!" gritaram as pessoas. Presos à terra, os condores eram criaturas cativas, tristes, empoeiradas. Em pleno voo, eram majestosos.


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