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Aldo Pereira

Bruxas e bruxos

Punição coletiva de bruxas não é motivada apenas por indignação, mas também pelo mesmo fascínio mórbido de executores e espectadores

Doença hereditária, o albinismo se caracteriza, entre outras anomalias, por despigmentação que confere ao portador pele branca, olhos rosados e cabelo louro, ainda que os pais sejam negros normais. Desde o fim da última década, a supersticiosa discriminação sofrida por albinos vem assumindo caráter sinistro em aldeias da Tanzânia: dezenas deles têm sofrido extirpação de órgãos internos ou amputação de membros para uso em feitiços diversos.

Em todas as sociedades parece haver bruxas ou bruxos, xamãs, pajés e outros místicos com suposto poder de conjurar entidades sobrenaturais --forças impessoais e espíritos-- e induzi-las a servir quem as invoca. Punir legalmente malefícios buscados por tais meios é problemático, pois implica reconhecimento racional da bruxaria. No Código Penal brasileiro o dilema é resolvido pela proscrição de charlatanismo e curandeirismo (artigos 283 e 284).

Nem toda bruxaria é necessariamente malévola, nem claramente distinta das crenças e práticas de ocultismo e até de espiritismo. Nos Estados Unidos, onde Halloween é folclore, uns 20% da população admite crer em bruxaria. Mas o fascínio do fantástico parece mundial, como atesta o sucesso de Harry Potter. Sucesso em larga medida inocente: alguns cultos pouco mais são do que reuniões sociais marcadas por cânticos, transes e danças rituais.

Ter havido mais bruxas que bruxos em sociedades de cultura europeia reflete a misoginia da teologia original cristã, que responsabilizou Eva como epônimo da Perdição. Motivados pelo que psicanalistas diagnosticariam como projeção, os primeiros teólogos cristãos atribuíam o impulso sexual masculino a emanações diabólicas da mulher, e não a instinto próprio deles.

Muitos santos buscaram resguardar-se dessa tentação por meio de mortificações como autoflagelação e uso do cilício. Caso extremo foi o de Origenes, o mais celebrado teólogo cristão do século 3, que castrou a si mesmo ainda moço, segundo testemunho de outro teólogo, Eusébio Panfili (c. 270-340).

Desse preconceito funesto resultou serem bruxas, bem mais que bruxos, as vítimas da repressão cristã do paganismo. Nunca se saberá quantas terão sido enforcadas ou assadas em praça pública por serem portadoras de epilepsia, esquizofrenia e outros distúrbios psiquiátricos. Inquisidores supervisionavam a tortura necessária à extração de confissões, mas encarregavam de execuções os governantes locais. Que, como os carrascos e supervisores, quase sempre eram homens.

Apesar da história de conflitos, os mundos do bruxedo e do cristianismo (inclusive seu legado judaico) têm mostrado extenso sincretismo quanto a crenças místicas: amuletos, aparições, conjuras, contratos sagrados ("promessas"), exorcismos, invocações, mortificações, poções, relíquias e outros fetiches, tabus alimentares e sexuais. Anedota apócrifa conta que certa vez um amigo repreendeu Niels Bohr (1885-1962): "Como é que um gênio da física como você usa ferradura pregada acima da porta?". Resposta: "Não acredito nessa coisa, não. Mas ouvi dizer que funciona também para quem não acredita".

O antagonismo subjacente mostra recorrente violência, como no linchamento de Fabiane Maria de Jesus, que moradores de Guarujá (SP) tomaram por bruxa homicida. A documentação do incidente sugere que punição coletiva de bruxas não é motivada apenas por indignação, mas também pelo mesmo fascínio mórbido de executores e espectadores (incluída aí a audiência da mídia) por malhação de Judas e rixas de torcedores de futebol.

aldopereira.argumento@uol.com.br


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