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Demétrio Magnoli

Sudetenland

A Rússia de Putin não é a Alemanha de Hitler --mas a 'nação de sangue' é o que é, hoje como ontem

Vladimir Putin tem algo a celebrar. Duas semanas atrás, o "Washington Post" publicou um artigo de Anne-Marie Slaughter no qual mencionam-se os "profundos laços históricos e culturais" que unem a Rússia à Crimeia e aos outros três semiprotetorados secessionistas gerados por Moscou (Transdnístria, Abkhazia e Ossétia do Sul). Sob Hillary Clinton, Slaughter ocupou uma diretoria do Departamento de Estado. Os argumentos dela ecoaram, no Brasil, pelas vozes do chanceler Luiz Alberto Figueiredo e, aqui e ali, em textos de colunistas distraídos. Ela --e eles-- repetiriam a narrativa hoje, quando Moscou fabrica um cenário similar ao da Crimeia no leste da Ucrânia?

A ordem interestatal sustenta-se sobre o respeito aos princípios da soberania e autodeterminação nacionais, que repousam sobre o conceito do Estado-nação como um contrato político entre cidadãos. A Escócia fará um referendo sobre a secessão, cuja legalidade deriva do "contrato" que define a Grã-Bretanha como um Estado plurinacional. Com base no contrato constitucional que define a Espanha como um Estado unitário, o Parlamento espanhol acaba de rejeitar a solicitação da Catalunha de um referendo secessionista. O referendo na Crimeia violou a Constituição ucraniana: ele seria ilegal mesmo se não fosse amparado pela presença ostensiva de forças russas de ocupação.

Na linha sugerida por Slaughter, os tais distraídos justificaram a anexação sob o argumento de que a Crimeia é habitada por uma maioria de russos étnicos --e especularam sobre os resultados supostamente óbvios de um hipotético referendo legal. Se atentassem para os fundamentos implícitos de suas ideias, teriam que declarar a falência do conceito contratual do Estado-nação, substituindo-o pelo conceito da "nação de sangue". É dela que fala Putin quando alega defender as "minorias russas" no exterior. Mas essa música tem história.

Do ponto de vista conceitual, o paralelo apropriado para a anexação russa da Crimeia encontra-se na invasão dos Sudetos pela Alemanha nazista. Sudetenland é a palavra alemã que designa as regiões descontínuas da antiga Tchecoslováquia habitadas majoritariamente por populações germanófonas. Na primavera de 1938, os nazistas dos Sudetos deflagraram a agitação autonomista que serviria como pretexto para Hitler exigir a transferência das regiões para a Alemanha. Os primeiros-ministros britânico, Chamberlain, e francês, Daladier, curvaram-se ao ultimato alemão na célebre Conferência de Munique. A Rússia de Putin não é, evidentemente, a Alemanha de Hitler --mas a "nação de sangue" é o que é, hoje como ontem.

Slaughter percorreu quase toda a trajetória discursiva formulada por Putin, sugerindo que a anexação da Crimeia assemelha-se à intervenção da Otan em Kosovo, em 1999. O paralelo não poderia ser mais falso. Na Crimeia, nenhuma ameaça erguia-se contra a população russófona; na província sérvia, pesava sobre os albaneses étnicos o espectro de massacres em massa. A secessão da Crimeia funcionou como disfarce para a anexação; Kosovo não foi anexado, tornando-se independente dez anos mais tarde, por decisão parlamentar democrática. O paralelo certo para Kosovo é Ruanda: sem a intervenção ocidental, o mundo assistiria a um outro genocídio.

Uma coisa é admitir, realisticamente, que a Crimeia não tem volta; outra, bem diferente, é justificar a anexação. Hoje, destacamentos de ativistas invadem edifícios de governo em cidades do leste da Ucrânia, exigindo plebiscitos sobre a secessão, enquanto Putin fala em "guerra civil" e concentra 50 mil soldados na fronteira russo-ucraniana. A "nação de sangue" tem uma lógica inflexível: aquilo que vale para a Crimeia, vale também para a Sudetenland russa na Ucrânia oriental. Slaughter e seus seguidores irão até o fim na remontagem da peça encenada por Chamberlain e Daladier?


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