A Alfaguara relança em volume único os dois livros de contos de estreia de Ronaldo Correia de Brito: "Faca" e "Livros dos homens". É chance de rever o que estava no início da carreira do escritor e fazer um balanço.
O universo temático é o sertão brasileiro. Somos apresentados a uma região que ora é mítica e atemporal, com crenças oriundas de culturas ameríndias, africanas e portuguesas, mas que também é marcada pelo descompasso das experiências migratórias.
O volume mostra um autor potente, mas com a mão pesada de quem ainda não confia nos próprios recursos ficcionais e procura forjar um mundo diante do leitor.
Essa é a questão mais importante do livro: de que mundo se fala quando falamos do sertão? Conhecemos a máxima de Guimarães Rosa,"o sertão está em toda parte", que justificaria, ainda hoje, uma volta ao regional na literatura. Mas não parece ser o caso aqui.
Quando um narrador onisciente nos oferece construções como "O crime de Chagas partira o coração hospitaleiro dos sertanejos", é sinal de que estamos diante da voz narrativa impositiva e julgadora de um demiurgo.
A assertiva está na contramão da Literatura do século 20, que coloca em xeque a ideia de que possa haver um mundo independente do ponto de vista dos personagens.
Esse narrador em terceira pessoa, que em outro momento, diz: "Sinceridade, coragem e generosidade, marcas de ferro no coração sertanejo, nada valiam para esses mercenários", exige do leitor que se acredite na palavra dita como uma verdade irrefutável.
O risco que se esconde por trás da manobra é o da manutenção de um discurso de dominação, que afasta o personagem de sua verdade narrativa.
Nessa operação, o narrador corre o risco de naturalizar a violência, a misoginia e o racismo numa dimensão supostamente trágica da experiência humana. Mas o trágico aqui se resume ao enredo imposto pelo narrador, não está na forma.
Salvam-se, no conjunto, os textos escritos com narradores em primeira pessoa, como "Lua Cambará", "Eufrásia Meneses", "Qohélet" e "Mexicanos", ou aqueles em que o narrador onisciente e duro abre espaço para as inflexões dos personagens por meio do discurso indireto livre, quando somos capazes de enxergar um mundo fluído e pulsante.
Faca e Livro dos Homens |
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"Rabo de burro", "Da morte de Francisco Vieira", "Maria Caboré", "Cravinho" e "Livro dos homens" mostram, enfim, os personagens libertos do cabresto do narrador.
É apenas nesses momentos, quando os personagens ganham relevo distinto do que sugerem a paisagem e a tradição do interior nordestino, que se poderia afirmar que o sertão está em toda parte, que está dentro da gente. Porque é somente por meio de nós que ele pode existir.
ROBERTO TADDEI é coordenador da pós-graduação Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz.
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