Contos trazem narrador com voz impositiva e julgadora

Crédito: Divulgação A modelo transexual Gabrielle Joie filmou a serie "Toda Forma de Amor" para o Canal Brasil
O escritor cearense radicado no Recife Ronaldo Correia de Brito

ROBERTO TADDEI
ESPECIAL PARA A FOLHA

FACA E LIVRO DOS HOMENS (bom)

  • Preço R$ 49,90 (200 págs.)
  • Autor Ronaldo Correia de Brito
  • Editora Alfaguara

A Alfaguara relança em volume único os dois livros de contos de estreia de Ronaldo Correia de Brito: "Faca" e "Livros dos homens". É chance de rever o que estava no início da carreira do escritor e fazer um balanço.

O universo temático é o sertão brasileiro. Somos apresentados a uma região que ora é mítica e atemporal, com crenças oriundas de culturas ameríndias, africanas e portuguesas, mas que também é marcada pelo descompasso das experiências migratórias.

O volume mostra um autor potente, mas com a mão pesada de quem ainda não confia nos próprios recursos ficcionais e procura forjar um mundo diante do leitor.

Essa é a questão mais importante do livro: de que mundo se fala quando falamos do sertão? Conhecemos a máxima de Guimarães Rosa,"o sertão está em toda parte", que justificaria, ainda hoje, uma volta ao regional na literatura. Mas não parece ser o caso aqui.

Quando um narrador onisciente nos oferece construções como "O crime de Chagas partira o coração hospitaleiro dos sertanejos", é sinal de que estamos diante da voz narrativa impositiva e julgadora de um demiurgo.

A assertiva está na contramão da Literatura do século 20, que coloca em xeque a ideia de que possa haver um mundo independente do ponto de vista dos personagens.

Esse narrador em terceira pessoa, que em outro momento, diz: "Sinceridade, coragem e generosidade, marcas de ferro no coração sertanejo, nada valiam para esses mercenários", exige do leitor que se acredite na palavra dita como uma verdade irrefutável.

O risco que se esconde por trás da manobra é o da manutenção de um discurso de dominação, que afasta o personagem de sua verdade narrativa.

Nessa operação, o narrador corre o risco de naturalizar a violência, a misoginia e o racismo numa dimensão supostamente trágica da experiência humana. Mas o trágico aqui se resume ao enredo imposto pelo narrador, não está na forma.

Salvam-se, no conjunto, os textos escritos com narradores em primeira pessoa, como "Lua Cambará", "Eufrásia Meneses", "Qohélet" e "Mexicanos", ou aqueles em que o narrador onisciente e duro abre espaço para as inflexões dos personagens por meio do discurso indireto livre, quando somos capazes de enxergar um mundo fluído e pulsante.

Faca e Livro dos Homens
Ronaldo Correia de Brito
Faca e Livro dos Homens
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"Rabo de burro", "Da morte de Francisco Vieira", "Maria Caboré", "Cravinho" e "Livro dos homens" mostram, enfim, os personagens libertos do cabresto do narrador.

É apenas nesses momentos, quando os personagens ganham relevo distinto do que sugerem a paisagem e a tradição do interior nordestino, que se poderia afirmar que o sertão está em toda parte, que está dentro da gente. Porque é somente por meio de nós que ele pode existir.

ROBERTO TADDEI é coordenador da pós-graduação Formação de Escritores do Instituto Vera Cruz.

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