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04/04/2012 - 02h15

"Dissecar cérebros é algo muito intenso"

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ZOE WILLIAMS
DO "GUARDIAN"

Você nunca sabe o que vai sentir ao ver um cérebro humano ser dissecado. Estamos a ponto de assistir ao procedimento --Jill Davis, da Parkinson's UK; Marius Kwint, curador da exposição Brains, da Wellcome Collection; e eu.

Alastair Grant/Associated Press
'My Soul', trabalho da artista Katherine Dawson, faz parte da exposição "Brains", da Wellcome Collection de Londres
'My Soul', trabalho da artista Katherine Dawson, faz parte da exposição "Brains", da Wellcome Collection de Londres

Na semana passada, um estagiário desmaiou. Kwint exibe um sorriso fixo, quando saímos do elevador, e diz: "É bem intenso". Rio alto demais, e imagino que ele vá considerar que estou nervosa. Na verdade, é porque a frase me recorda o que as pessoas que vendiam ecstasy diziam nos anos 90 (não eu --outras pessoas).

Dentro de um pequeno laboratório que cheira a formol, o professor Steve Gentleman parece representar um retrato vivo da teoria da felicidade de Csikszentmihalyi --uma pessoa intensamente concentrada em uma atividade nem difícil demais e nem fácil demais.

Gentleman está fatiando o cérebro, de acordo com um protocolo mundial de dissecação que ajudou a desenvolver. Cada fatia do lobo frontal precisa ter cinco milímetros de espessura, mas a tarefa é mais fácil do que parece; eles têm uma tábua de corte especial, e a faca é realmente afiada.

Depois de fatiar, ele obtém pequenas porções de cérebro por meio de novos cortes, informando que "esse é o centro do medo e da agressão"; "aqui temos o horário nobre --personalidade, razão, função executiva". Ele armazena as fatias em gavetas tampadas. A matéria cerebral residual é descartada em um pote rotulado.

"Eles continuam a ser pacientes", Gentleman explica. "É preciso mantê-los como indivíduos separados". Considero o detalhe complicado --imaginar que um cérebro ainda confira a alguém a identidade de paciente deve dificultar a tarefa de cortá-lo. Mas as coisas mudam quando você faz alguma coisa durante toda sua carreira. Pergunto a Gentleman --professor titular de neuropatologia-- se ele sente alguma hesitação. "Não, nunca", ele responde, como se mal pudesse conceber quanto ao que poderia hesitar.

"Vai ver que você matou essa porção de seu cérebro", digo.

"Talvez", ele responde, sem se abalar. Mas é óbvio que não achou a piada muito engrada.

Efe
Imagem de obra da exposição "Brains", que fica em cartaz no Wellcome Collection, de Londres, até 17 de junho
Imagem de obra da exposição "Brains", que fica em cartaz no Wellcome Collection, de Londres, até 17 de junho

Muitos dos cérebros já chegam cortados em dois; uma das metades é usada para pesquisas de bioquímica e genética, o chamado trabalho não estrutural. A outra metade fica congelada por um algum tempo, passa duas semanas banhada em solução fixadora e depois é enviada aos patologistas que pesquisam doenças neurodegenerativas --a Parkinson's UK financia o banco de cérebros, e o Mal de Parkinson é a principal área de pesquisa, seguido de perto pelo Mal de Alzheimer e a esclerose múltipla. Poucas pessoas doam seus cérebros à ciência. (Minha cunhada comentou: "não entendo o motivo --elas mal os usam quando vivas".)

Não se sabe se a falta de doações envolve alguma forma de repulsa ou se é pelo fato de que pouca gente sabe como um cérebro pode ser útil para os pesquisadores. Mas há famílias inteiras que assinaram para doar, depois de verem um parente morrer de Mal de Parkinson, e também existem alguns doadores conhecidos (Jeremy Paxman, Jane Asher, Graham Norton).

De qualquer forma, o cérebro em que Gentleman está trabalhando, depois do congelamento e do fixador, tem uma cor amarela pálida e uma curvatura pronunciada --como se fosse um ovo em conserva. Isso faz com que pareça menos vulnerável e torna mais fácil contemplá-lo. As dobras e cristas bizantinas, a impressionante curva fetal, os vasos sanguíneos sem sangue, têm efeito hipnótico. É mais onírico que repulsivo; até que alguém comenta sobre um detalhe do tipo "está vendo aquelas depressões no logo frontal? São as órbitas dos olhos".

Nosso primeiro cérebro é parte de um grupo de controle --o paciente não tinha Mal de Parkinson, ainda que pareça ter sofrido diversos derrames. Muitas das trajetórias de doenças são visíveis a olho nu. A pressão sanguínea alta deixa pequenas lacunas, ocos no cérebro.

Nos pacientes de Alzheimer, é possível ver encolhimento ou atrofia no lobo frontal. Uma das primeiras áreas afetadas pelo Mal de Parkinson é o córtex singular, no canto dos lobos frontais. Nos pacientes de esclerose múltipla, esclerose quer dizer endurecimento, e às vezes é possível sentir que o tecido cerebral se enrijeceu, ao tocá-lo.

GRANDE BURACO

Gentleman mantém uma atitude positiva quanto a todos os pacientes, contemplando o tronco cerebral e elogiando: "Vida saudável". Em dado momento, ele explica que "derrames são questão de sorte. Você pode ter um derrame e nem perceber. Ou ter um derrame que deixa uma cavidade cística --aquilo que um leigo definiria como "um grande buraco na cabeça".

Da mesma forma, uma lesão no tronco encefálico pode ser devastadora, mas no caso da esclerose múltipla não existe correlação forte entre o número de lesões no cérebro como um todo e a extensão da deficiência que o paciente venha a sofrer.

Mas é preciso levar em conta que o conhecimento atual é provisório. Um dia saberemos mais sobre tudo isso. No entanto, essas doenças não podem ser estudadas quando estão em curso.

Um diagnóstico formal de Alzheimer só pode ser feito depois da morte do paciente. É claro que há diagnósticos em vida, mas existe uma margem de erro --um estudo longitudinal em pequena escala do Mal de Alzheimer recentemente acompanhou 13 pacientes até a morte, e a autópsia revelou que um deles na verdade não sofria da doença.

"A patologia", diz o neuropatologista, "não é coisa de gente esquisita que guarda órgãos no porão". Não creio que as pessoas tenham preconceito tão grande contra autópsias quanto aqueles que as realizam talvez imaginem. Mas a grande e urgente necessidade de cérebros para estudo não costuma estar presente a não ser da vida daqueles que testemunharam de perto os efeitos do Mal de Parkinson ou outras doenças degenerativas.

Por isso faz sentido, de maneira um tanto sombria, que o fato de que não seja possível diagnosticá-las de modo confiável também dificulte compreender o que exatamente as causa. Existe algum elemento hereditário --15% das pessoas que sofrem da doença têm um parente direto que foi vítima dela--, mas não é dominante.

Uma teoria é a de que a causa é uma toxina, quer viajando em percurso reverso da barriga ao cérebro, quer aspirada pelo nariz. É realmente difícil imaginar que uma doença degenerativa possa resultar de algo tão simples quanto a respiração, mas isso com certeza é o que os fumantes imaginavam quando alguém começou a estudar o câncer de pulmão.

INÉRCIA

É possível dizer, contemplando a imagem de um cérebro fora do crânio, que a falta de interesse mais amplo na doação desse órgão envolve mais que inércia. Não sei qual é a sensação de ser religioso, mas na ausência de fé é impossível não considerar o cérebro como casco de sua personalidade. É um confronto interessante entre o ateísmo e o senso de identidade, reconhecer o quanto é difícil contemplar a si mesmo de maneira desapaixonada, na morte, como apenas um determinado volume de carne.

A razão para minha presença é a inauguração da exposição Brains, da Wellcome Collection, que consiste de amostras de cérebros, obras de arte, vídeos e fotografias.

Creio que seja revelador o fato de que tantas das imagens da exposição ou se baseiam na violência ou deixam uma trilha de violência, como um tronco encefálico descartado.

Historicamente, poucos cérebros chegaram às mãos da ciência sem conflito --quer tenham sido extraídos pelos nazistas, doados por integrantes do movimento pelo sufrágio feminino cansadas de ouvir besteiras frenológicas ou obtidos de assassinos executados. Os criminosos violentos contam com representação desproporcional nas autópsias cerebrais; sua vileza os excluiu da preservação de sua dignidade na morte, e pareciam especialmente interessantes aos patologistas do passado.

O cérebro de Einstein também está na exposição. Seu filho sempre contestou que tivesse concedido permissão para que o cérebro do pai --não especialmente grande-- fosse autopsiado, quanto mais exposto (e permitam-me uma observação de espectadora: seria uma imensa vergonha caso o cérebro não estivesse na exposição; estamos falando de Einstein, afinal).

A questão é complicada não só pela maneira pela qual personificamos o cérebro mas também pelo fato de que não é possível usá-lo em transplantes. Todos os demais órgãos podem compensar a repulsa que sua extração causaria com o brilho altruísta de prolongar a vida de alguém.

De fato, em certos casos --o coração, por exemplo--, esse altruísmo vem acompanhado pela sombra da reencarnação, a sensação de que seu ato de generosidade permitirá que continue a viver em meio às costelas alheias. Isso jamais ocorrerá com o cérebro. Bem, "jamais" pode ser exagero. Mas, porque conta com mais de um trilhão de conexões, o cérebro parece ser o pior lugar para começar, no mundo dos transplantes.

Se você viver até a época em que transplantes de cérebro se tornarão possíveis, eu recomendaria o lobo frontal de Jeremy Paxman (razão); o cerebelo de Jane Asher (controle de movimentos) e o hipocampo de Graham Norton (memórias --e aposto que ele tem ótimas lembranças).

O mais provável é que você se veja no mercado como doador. Compartilho de todas as hesitações, mas vejo que essas pesquisas não têm substituto. E pense pelo lado bom: você pelo menos não terá de assistir.

"Brains: The Mind as Matter", fica na Wellcome Collection, em Londres, até 17 de junho. wellcomecollection.org/brains

Tradução de PAULO MIGLIACCI.

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