Como a KGB tentou criar uma nova imagem no fim da URSS

DAVID REMNICK
tradução JOSÉ GERALDO COUTO

RESUMO Trecho do livro "O Túmulo de Lênin", que será lançado em 20 de fevereiro pela Companhia das Letras, o texto conta as tentativas do aparato policial soviético de criar uma imagem afável nos estertores do bloco comunista. O autor, David Remnick, foi correspondente em Moscou e recebeu um Pulitzer por essa obra em 1994.

Até chegar a Moscou, eu nunca tivera contato com um "grampo" de escuta. Na faculdade havia rumores de que um professor talvez cooptasse alunos para fazer essa tarefa, a exemplo do que os professores comunistas de Cambridge tinham feito com Philby, Burgess e Blunt*. Eu nunca soube de algo assim ter acontecido, embora suponha que essa era a ideia. Como repórter em Washington, senti-me ridículo nas poucas vezes em que fui convocado a escrever sobre espionagem e suas diversões. Inevitavelmente, alguém alimentava você com um belo de um embuste: um "furo de reportagem" que visava a algum ganho político obscuro, uma narrativa fascinante maquinada em algum porão de embaixada. Uma vez escrevi uma matéria sobre uma desertora soviética, a esposa de um funcionário da embaixada. Ela traiu seu país e fugiu para os braços de um vendedor de carros usados. Ficou conhecida, nas manchetes e em outras partes, como "a Mulher da Peruca Loura". Na televisão, ela usava sua peruca e grandes óculos escuros. Mais tarde assinou um contrato milionário para um livro. Eu sabia que tinha sido feito de bobo. Mas por quem?

Em Moscou, havia o entendimento de que nós, os estrangeiros, estávamos sob cuidadosa vigilância da KGB. Falava-se de outros repórteres empreendendo desairosas retiradas de Moscou depois de serem apresentados a fotos brilhantes deles próprios em intercurso sexual com pessoas que não eram suas esposas. Não importa quão dramáticos os eventos se tornavam em Moscou, o que nossos amigos e parentes em casa mais queriam era saber como era ser grampeado, ser espionado. Depois que se tornava um instinto evitar qualquer menção a nossos amigos soviéticos, saber que a vida era espionada não era nada, ou quase nada; era como uma leve dormência no antebraço que a gente esquece até tocar nele. Em geral, a gente deixava de se importar. De modo estúpido, arrogante, você se sentia invulnerável. Vá em frente. Eles que ouçam. A Guerra Fria tinha acabado, não tinha?

Vladimir Kryuchkov, que assumiu em 1988 o lugar de Viktor Chebrikov como chefe da KGB, tentou arduamente convencer o mundo de que havia criado um serviço secreto mais brando, afável. O Ministério do Amor, como Orwell o chamava. Tomando uma página do livro de estilo do próprio Gorbatchóv, Kryuchkov tentou "personalizar" a si mesmo e à instituição que representava. Descreveu para a imprensa seu grande amor à ópera "Norma", de Bellini. Se Van Cliburn se mudasse para Moscou, disse, a KGB construiria para ele um apartamento maravilhoso. Kryuchkov chegou a apelar para a solidariedade dos trabalhadores. "A vida de um diretor da KGB não é nenhum mar de rosas", declarou aos editores da "New Times". Tanto trabalho e tão pouco tempo. Ele dava entrevistas coletivas. Respondia a perguntas (cuidadosamente filtradas) num talk show televisivo. Encontrava-se com visitantes estrangeiros. Havia até mesmo excursões a Lubyanka nas quais guias mostravam caixas cheias de absurdos equipamentos de espionagem: telefones em saltos de sapatos, coisas assim. Kryuchkov nunca mencionou que tinha participado do planejamento da invasão de Budapeste em 1956 e de Praga em 1968. Isso não se encaixava direito na nova imagem.

Sem diminuir suas forças em um único espião ou guarda de fronteira, Kryuchkov havia embarcado numa das mais curiosas campanhas de relações públicas da história, tentando retratar o aparato de espionagem de Dzerzhinsky, Yezhov, Beria e Andropov como um zeloso servo da legalidade e da reforma democrática. Uma noite, a imprensa foi convidada ao centro de imprensa do Ministério do Exterior para assistir a um documentário sobre a "nova KGB", no qual agentes se extasiavam com a comida ("Pode me dar a receita?") e geralmente agiam como os rechonchudos novatos num filme de recrutamento do Exército americano.

Kryuchkov estava empenhado não apenas em dourar o presente, mas também em maquiar o passado. "A violência, a desumanidade e a violação dos direitos humanos sempre foram estranhos ao trabalho de nossos serviços secretos", declarou ao jornal italiano "L'Unità". Embora a era Brejnev "não tenha sido o melhor de nossas vidas", Kryuchkov disse que a KGB agiu na época em "cumprimento da legislação vigente".

A autopropaganda de Kryuchkov nasceu da necessidade. Pela primeira vez em sua existência, a KGB estava sujeita à crítica pública. O ex-levantador de peso olímpico Yuri Vlasov tomou a palavra no Congresso dos Representantes do Povo em maio de 1989 e denunciou a KGB como um vasto "império subterrâneo" que vinha usando seus agentes e prisões para massacrar os melhores e mais brilhantes de cada geração de soviéticos desde a revolução. Vlasov, um Hércules com óculos de armação de tartaruga, disse que a KGB era o "mais poderoso de todos os instrumentos do aparato existentes" e devia ser colocada sob estrito controle da nova legislatura eleita. Não é preciso dizer que uma coisa assim nunca havia acontecido, sobretudo não ao vivo na televisão nacional. Kryuchkov admitiu que teve uma reação "desagradável" ao discurso de Vlasov, "mas então eu disse a mim mesmo: preciso pensar sobre o que está ocorrendo ["¦]. Ele simplesmente não está a par das muitas coisas em que agora estamos empenhados e do que estamos planejando fazer. Se todo o povo soviético for tão ignorante quanto ele, então muitos devem seguir a mesma linha de raciocínio". Afinal de contas, disse, os relatos ocidentais de que a KGB de algum modo representava uma força reacionária, antirreforma, no seio da liderança eram "falsos ["¦]. A KGB e o Exército estão ambos intimamente conectados com o povo. Eles aceitam sem ressalvas o programa de perestroika elaborado pelo Partido Comunista e estão prontos para apoiá-lo e defendê-lo".

Kryuchkov deve mesmo ter pensado que estava enganando todo mundo. Não havia pudor algum em suas jogadas de relações públicas. Homem da velha ordem, estava seguro de que podia dominar também a nova.

Tinha a arrogância de um homem que viu televisão uma vez e se convenceu de que a compreendeu. Em 1990, a KGB chegou a abrir um departamento de imprensa e encarregou um general de "facilitar as relações com a imprensa". Certa ocasião, Kryuchkov convidou todas as mulheres correspondentes em Moscou para uma "entrevista", na qual as tratou com toda a cortesia de que um salafrário é capaz. Garçons vestidos formalmente trouxeram às damas seus presentes de despedida: garrafas de champanhe doce soviética e uma história dos serviços secretos soviéticos, em dois volumes com capa vermelha imitando couro, autografados pelo próprio Kryuchkov. O que ele queria com isso? Será que esperava que as repórteres corressem para seus teclados e escrevessem artigos comparando a KGB à Liga das Eleitoras?

Uma manhã, na primeira página do "Komsomolskaya Pravda", sob a manchete "miss KGB", havia uma foto de uma bela moça chamada Katya Mayorova, a detentora do único "título de beldade dos serviços de segurança" do mundo. Era uma pose curiosa. Estava fazendo o gesto erótico de afivelar o colete à prova de balas. O artigo dizia que a camarada Mayorova apareceria em breve no programa de televisão "Boa Noite, Moscou" para fazer "anúncios" sobre as operações da KGB. Dizia que Katya vestia seu colete à prova de balas com "uma sofisticada suavidade, como um modelo Pierre Cardin". Além da "mera beleza", entre seus muitos encantos estava a destreza para "desferir um pontapé de caratê na cabeça do inimigo".

Telefonei para o centro de imprensa e perguntei se poderia entrevistar Miss KGB. Pensei que todo mundo no quartel-general da KGB em Lubyanka daria risada da minha cara. Mas dez minutos depois me ligaram de volta, confirmando uma entrevista lá.

"Posso levar uma câmera?", perguntei.

"Já esperávamos que você trouxesse", foi a resposta.

Na hora agendada para o encontro, estacionei em frente a um dos prédios secundários perto da praça Lubyanka. Dei meu nome a uma recepcionista e me sentei para esperar por minha audiência com a soberana reinante. Enquanto esperava, notei que de quando em quando uma pessoa comum vinha da rua e enfiava um envelope ou mesmo um maço de documentos numa grande caixa de correio. Era ali que as pessoas vinham com seus pedidos e queixas. Era uma amarga lembrança daquilo que aquele lugar tinha sido –e ainda era. Pensei no romance de Lydia Chukovskaya, "Sofia Petrovna", seu relato ficcional dos dias que ela passou tentando fazer com que a polícia secreta lhe dissesse o que tinha acontecido com seu marido; pensei nos dias de Akhmátova na fila, esperando para saber o destino de seu filho. E imaginei a cena no andar de baixo no final do dia, alguns agentes sentados ao redor da fornalha, rindo e esvaziando a correspondência no fogo.

"Sr. Remnick?".

Era Katya Mayorova, esplendidamente envolta num suéter angorá e numa calça jeans italiana bem justa.

Na presença de um "assessor de imprensa" da KGB, Katya respondeu a minhas perguntas –ou não respondeu. Ela disse que o concurso tinha ocorrido "em sigilo" e que até mesmo o número de concorrentes era segredo. Estava claro, sem precisar ser mencionado, que nunca houvera concurso nenhum. Mas Katya, para alguém treinado em "métodos letais" e na habilidade de atirar pela organização mais temida do mundo, era encantadora. Estava tirando o máximo proveito disso. Com sua combinação de doçura de Miss América e um velado senso de perigo, estava satisfazendo alguma fantasia primordial que eu não conseguia identificar muito bem. O quê? A Executora Cor-de-Rosa? Mata Hari? Não, ela disse que não saía "necessariamente só com homens da KGB". Sim, ela vinha recebendo uma porção de telefonemas desde que a matéria do "Komsomolskaya Pravda" fora publicada. "Os homens são iguais em toda parte", disse ela, revirando os olhos como uma autêntica Valley Girl. Quando lhe pedi para posar para uma foto, ela se postou ao lado de uma estátua de Feliks "de Ferro" Dzerzhinsky, o fundador da polícia secreta, e arrulhou.

*Nota do tradutor: Kim Philby, Guy Burgess e Anthony Blunt foram membros da alta hierarquia do serviço secreto britânico que espionavam para a União Soviética. Converteram-se ao comunismo quando estudavam na Universidade de Cambridge, na década de 1930.

DAVID REMNICK, 58, jornalista, é editor da revista "The New Yorker".

JOSÉ GERALDO COUTO, 59, é tradutor e jornalista.

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