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14/05/2012 - 18h55

A sorte dos piratas somalis

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NICK HOPKINS
DO "GUARDIAN"

O Absalom é um navio de guerra dinamarquês moderno e bem equipado, uma embarcação de nova geração. Possui tecnologia furtiva para evitar radares inimigos, mísseis balísticos que seriam capazes de afundar um porta-aviões e, nessa viagem liderada pela Otan ao largo da Somália, uma pequena companhia de mergulhadores bastante armados das forças especiais, com sua lancha própria.

Não chega a surpreender, portanto, que os piratas somalis estejam se sentindo em posição mais fraca no momento.

Os piratas navegam nos mares ao largo do Corno da África em pequenos "dhows" (barcos a vela de tipo indiano) ou esquifes, ainda menores, armados com pistolas e metralhadoras velhas, calçando chinelos do tipo Havaianas e apostando que poderão sequestrar uma embarcação antes que sua comida ou água se esgote ou que morram afogados.

Nos últimos 12 meses, o número de ataques bem-sucedidos de piratas caiu de 45 para 24, e mais de 120 outros ataques foram frustrados. Mas ninguém envolvido na missão militar ao largo da África oriental pensa que a batalha foi ganha. Na realidade, muitos altos oficiais consideram que a operação de combate à pirataria chegou a um ponto crítico.

Jason R. Zalasky - 8.out.08/Reuters
Piratas somalis navegam pela costa do país; foto foi feita por um navio da Marinha norte-americana
Piratas somalis navegam pela costa do país; foto foi feita por um navio da Marinha norte-americana

Os comandantes estimam que, para cada pirata capturado e levado a julgamento, outros três ou quatro são soltos. Este ano dezenas de piratas foram devolvidos ao mar, sem alarde, apesar da existência de provas convincentes que justificariam levá-los a julgamento.

Nenhum dos países da região quer assumir a dianteira nos julgamentos por pirataria, e aqueles que foram persuadidos a aceitar suspeitos --especialmente as Seychelles e o Quênia-- estão com a capacidade esgotada e demonstram relutância em receber mais.

Nenhum dos governos que estão enviando embarcações de guerra à região, entre eles o do Reino Unido, quer receber os piratas, apesar de eles terem custado estimados US$ 6,9 bilhões (R$ 13,9 bilhões) à economia mundial no ano passado.

Assim, sem alarde, mais e mais dos suspeitos de pirataria estão sendo libertados, o incentivo para caçá-los se reduziu um pouco, e os criminosos somalis mal conseguem acreditar em sua sorte. "Quando eu digo aos piratas que os estamos desembarcando em terra outra vez, eles ficam mais ou menos comemorando", comentou o comandante Anders Friis, capitão do Absalom. "Ficam muito, muito felizes."

Nos seis meses que já passou patrulhando a costa somali, o Absalom capturou 58 suspeitos de pirataria. Apenas oito deles aguardam julgamento.

Em fevereiro a equipe do navio capturou uma tripulação de 17 suspeitos de pirataria e aguardou para ver qual país se ofereceria como voluntário para recebê-los e julgá-los. Trinta e oito dias mais tarde, recebeu a resposta: nenhum. Todos os suspeitos foram levados de volta à terra firme, perto do lugar onde foram capturados, para que não fossem atacados por tribos ou gangues rivais.

Os médicos do Absalom observaram que os homens estavam em média pesando dois quilos a mais e estavam muito mais saudáveis do que quando tinham sido capturados. Outros 16 suspeitos de pirataria capturados em abril passaram três semanas nas celas improvisadas do setor de carga do navio.

Advogados que trabalham no Absalom acharam que os argumentos legais contra eles eram fortes, mas eles só podem recomendar que o caso vá a julgamento. É preciso que alguém se disponha a "sediar" um julgamento, e não há muitos interessados. Na semana passada, 12 dos piratas foram libertados.

O comandante do navio, Anders Friis, é estoico e diz que não está frustrado. Mas acrescenta: "Somos profissionais. Estamos fazendo nosso trabalho. Obviamente o melhor seria que fossem levados a julgamento."

"Meu problema é esse: cada vez que desembarcamos pessoas, os piratas foram informados sobre como essas coisas funcionam, quais são nossas táticas. Isso faz com que seja mais difícil resolver o problema, porque eles desenvolvem suas próprias táticas."

Um membro sênior de sua equipe mostrou-se menos diplomático. "É uma situação absurda. Estamos fazendo o que nos foi pedido, mas acabamos andando em círculos. Viramos um navio-prisão, não um navio de guerra."

Os problemas causados pela pirataria lançada desde a Somália vêm crescendo desde 2005. Embora seja um problema internacional, David Cameron considerou a pirataria suficientemente grave para convertê-la em prioridade da política externa britânica; foi por isso que uma conferência sobre a Somália foi promovida em Londres em fevereiro.

Devastada pela guerra civil, pobreza e fome, e sem conseguir competir com as embarcações pesqueiras modernas de outros países, alguns somalis, apoiados por quadrilhas criminosas, voltam-se à pirataria para ganhar dinheiro. E, a julgar por esse critério, o dinheiro, eles vêm tendo alto grau de sucesso.

Apesar de o número de sequestros ter diminuído no ano passado, os piratas levantaram US$ 159,6 milhões em 31 resgates pagos, incluindo US$13,5 milhões pagos pela soltura do navio petroleiro de bandeira grega Irene SL, que transportava 2 milhões de barris de óleo. Foi o valor mais alto já pago.

Os reféns passam em média 178 dias presos, mas alguns são mantidos reféns por muito mais tempo. Alguns deles nunca chegam a voltar: 24 morreram no ano passado.

O modelo econômico da pirataria está funcionando bem na Somália. Em 2010 os EUA, a União Europeia e o Reino Unido deram ao país um total conjunto de US$ 298 milhões em assistência. Foi menos da metade do valor embolsado pelos piratas quando aeronaves leves jogaram contêineres à prova d'água, cheios de dinheiro vivo, nas águas próximas a seus assentamentos nas praias.

Essa atividade mudou o modelo econômico de todo o setor dos transportes marítimos, que no ano passado gastou US$ 5,5 bilhões para combater o problema, de acordo com o estudo "Oceans Beyond Piracy", da fundação One Earth Future (OEF).

Os navios estão sendo obrigados a mudar suas rotas e a levar guardas armados, e as empresas proprietárias dos navios andam pagando prêmios caros de seguros, sem falar nos resgates. Com mais de 42 mil embarcações percorrendo as águas em volta da Somália todos os anos e com cada vez mais piratas em ação, os incentivos estão mais a favor dos criminosos que da empresa.

Isso levou os governos a criar três missões militares --comandadas pela Otan, a UE e uma "força-tarefa conjunta multinacional"--, que patrulham as regiões do mar onde os piratas mais atuam.

Em termos de atrapalhar ou impedir ataques, as missões navais, que contam com 16 navios de guerra, acabam de ter seu ano mais bem-sucedido até agora, mas alarmes já estão soando em relação ao futuro.

Mohamed Dahir - 7.jan.10/France Presse
Pirata somali armado fotografado enquanto o cargueiro grego MV Filitsa é rendido em Hobyo, no nordeste da Somália
Pirata somali armado fotografado enquanto o cargueiro grego MV Filitsa é rendido em Hobyo, no nordeste da Somália

Embora 1.089 suspeitos de pirataria tenham sido detidos nos últimos cinco anos, há sinais de que os sistemas legais estejam ficando sobrecarregados de casos novos, e os tribunais das Seychelles e do Quênia já alcançaram o ponto de saturação.

Também existe o receio de que os piratas desenvolvam táticas novas e mudem as regras do jogo.

"Em 2011 assistimos a uma tendência preocupante", diz o estudo da OEF. "Em alguns casos, depois de receber um resgate os piratas libertaram a embarcação, mas não a equipe inteira. Em outros casos a embarcação foi abandonada e os reféns foram levados para terra firme na Somália, onde piratas exigiram pagamento de resgate para a soltura deles."

Outra preocupação são os ataques lançados em resorts turísticos do Quênia, como o incidente que levou à morte do britânico David Tebbutt, em setembro passado. A mulher de Patrick, Judith, foi solda em março, após o pagamento de resgate.

Como os navios de guerra não podem operar dentro das águas territoriais de Omã e Iêmen, é para lá que os piratas vêm indo --mais um sinal de que os criminosos estão tentando adaptar-se às novas circunstâncias, e não desistir de seu modo de subsistência.

ESPIONAGEM

Os capitães e tripulantes dos navios de guerra que fazem parte da força-tarefa atual consideram que já entendem bem como os piratas operam e como podem ser capturados.

Além das fragatas e dos destróieres, os franceses têm um avião de espionagem Awacs na área. Embora nenhum representante da Otan o admita, o que se presume é que os EUA estejam fornecendo informações obtidas por aviões espiões não tripulados que operam a partir de uma base ao norte de Djibuti.

O "Guardian" teve acesso a uma série de fotos classificadas de espionagem usadas por comandantes da Otan. Elas revelam a posição dos acampamentos dos piratas e como são montados. Em alguns casos as imagens são tão nítidas que é possível divisar rostos.

Os acampamentos abrigam até 45 homens cada e são incrivelmente básicos. Com frequência são quadrados, com barcos emborcados servindo de abrigo para os piratas dormirem. Eles contêm oficinas rudimentares para o conserto dos motores de popa.

As cidades costeiras de Eyl e Garacad, no norte, e de Hobyo, mais ao sul, vêm sendo alvo da atenção da Otan. Fazendo um mapeamento cuidadoso dos "dhows" ancorados em cada lugar, os navios de guerra conseguem identificar aqueles que querem rastrear.

Os piratas na costa são apenas os soldados de infantaria, mas não é difícil identificar os "chefões". São aqueles que ergueram casas modernas, com paredes de pedra, perto de vilas de pescadores que não mudam há décadas.

"Os piratas têm plena consciência do que está acontecendo", fala Friis. "Eles têm uma rede extensa e sabem se adaptar. Compartilham informações e desenvolvem novas táticas. E tornam-se muito mais resistentes."

A prova disso, ele afirma, está no modo como os suspeitos piratas agem quando o Absalom se aproxima.

"Eles mais ou menos nos ignoram", explicou Friis. "Sabem que vamos atuar em autodefesa e que não é muito boa ideia apontar suas armas contra nós. Também sabem que seguimos diretrizes rígidas que nos proíbem de ferir qualquer pessoa."

Tentar derrotar a atitude de bravura indômita dos piratas também é um desafio. Quando, em 11 de abril, o Absalom prendeu 16 suspeitos de pirataria, Friis lhes deu a oportunidade de serem libertados.

"Eles tinham feito alguns reféns iranianos e paquistaneses, de modo que tivemos que separá-los dos suspeitos de pirataria", disse o tenente comandante Claus Krum, veterano de cinco missões antipirataria.

"Isso feito, dissemos aos suspeitos que podiam ficar conosco ou retornar ao esquife e voltar à Somália, e nós não atiraríamos neles. Eles optaram por ficar." Krum acrescentou: "Eles têm mentalidade totalmente diferente e um outro código de conduta. Não querem ser desmoralizados."

"É possível que alguns deles já estejam endividados e podem temer ser espancados se retornarem diretamente para a Somália. Eles não manifestam raiva, remorso ou sentimento de culpa."

É melhor para os piratas, portanto, ficarem no Absalom, na esperança de que serão libertados em algumas semanas com sua credibilidade intacta.

Krum não é o único oficial a bordo do Absalom a ter concluído que a operação antipirataria não passa de um paliativo e que a única maneira de combater a pirataria realmente é combater a pobreza em sua origem. "A Somália precisa de mais subsídios e provavelmente também de forças de paz em campo. Enquanto isso não acontecer, precisamos tentar deter e evitar a pirataria."

Mathais Buck, o executivo-chefe para assuntos legais do Absalom, garante que os piratas detidos sejam bem cuidados nas células enjauladas em que são mantidos durante a maior parte do dia e da noite.

Os suspeitos recebem tapetes para orações, revistas, exames médicos regulares e a mesma alimentação que os tripulantes.

"Não são dois exércitos convencionais em conflito. Não estamos em guerra. São os piratas contra países que estão acostumados a ter leis regendo o que fazem."

DISTINÇÃO

Isso significa que os dinamarqueses não querem manter os piratas a bordo por tempo demais sem lhes conseguir representação legal, e, como tão poucos países estão dispostos a organizar processos contra eles, a pressão para soltá-los aumenta a cada dia que passa.

O capitão Jeremy Hill, comandante da fragata americana USS Taylor, admite que está ficando mais difícil distinguir entre pescadores legítimos e piratas.

Eles vão ao mar nos mesmos lugares, nos mesmos tipos de embarcações e com os mesmos tipos de armas.

"Se existe incerteza, erramos por excesso de cautela, sem dúvida." Hill diz que a Otan "não quer que a gente reduza o ritmo da operação", mas que todos os envolvidos na missão militar têm consciência da publicidade negativa decorrente da libertação de suspeitos. Hill admite que hoje ele notificaria o comandante da missão da Otan antes de deter qualquer pessoa.

"A parte mais importante da solução está em terra", diz ele. "Simplesmente não cabe à Otan encontrar uma solução legal."

De fato, isso não é da alçada da Otan. Quando um navio de guerra da Real Marinha britânica detém suspeitos, cabe ao Reino Unido avaliar os pontos fortes de um processo legal e então procurar um país que aceite fazer o julgamento --isso se o Reino Unido não está disposto a fazê-lo, ele mesmo.

ACABAMENTO LEGAL

A possibilidade de piratas somalis serem levados a julgamento no Reino Unido, onde sem dúvida pediriam asilo, é uma das razões pelas quais ministros britânicos vêm se recusando a aceitar os casos.

"O acabamento legal é um problema, mas é um problema que foge por completo ao controle militar", disse um oficial naval sênior que exigiu anonimato para falar.

"Para cada pirata que vai a julgamento, há três ou quatro que acabam sendo desembarcados em terra outra vez. Acho que ainda é tremendamente importante atrapalhar a atividade deles, mas as pessoas dão muita importância a levar os piratas a julgamento, e o índice de sucesso legal é muito baixo."

Jack Lang, o assessor especial para pirataria somali do secretário-geral das Nações Unidas, disse no ano passado que "90% dos piratas capturados por países que patrulham os mares serão soltos sem irem a julgamento".

O Ministério do Exterior britânico reconhece o problema. O Reino Unido deu dinheiro às Seychelles para apoiar seu sistema legal; dois integrantes do Serviço de Promotoria da Coroa estiveram nas ilhas para acelerar os julgamentos, e três funcionários carcerários da Ilha de Wight foram encaminhados ao presídio de Montagne Posse.

Mas Seychelles tem capacidade para apenas 70 piratas, no máximo, em qualquer momento dado. O país tem baixa capacidade carcerária.

A esperança é que a construção de novos presídios em partes mais estáveis de Somaliland e Puntland, no norte da Somália, criará espaços para abrigar piratas condenados no cumprimento de suas penas de prisão. Mas a ideia ainda está em evolução.

No ano passado o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime iniciou as obras de construção de dois presídios em Garowe e Hargeisa. Além disso, contribuiu para a abertura de um tribunal de combate à pirataria em Mombassa.

"Nosso objetivo é ajudar a montar uma rede de centros regionais no Quênia, em Maurício, Seychelles e Tanzânia para processar piratas somalis suspeitos, que, se condenados, serão devolvidos à Somália para cumprir suas penas em condições carcerárias seguras e humanitárias", disse um representante do Ministério do Exterior britânico.

"A primeira transferência de piratas condenados de Seychelles de volta à Somália aconteceu no final de março, assinalando uma mudança no modo como combatemos a pirataria somali na região do oceano Índico."

Mas, embora os passos sejam importantes, ainda são pequenos, e os sistemas legais regionais ainda encontram dificuldades para lidar com os suspeitos que já estão detidos, o que dirá os suspeitos futuros.

Esse fato leva alguns integrantes da missão militar a se perguntar se não é tempo de repensar.

"Discute-se se a missão militar deveria estar fazendo mais do que já está", afirmou um comandante. "A pirataria somali não pode ser resolvida por nós. É um problema principalmente civil, que precisa ser resolvido em terra, não no mar."

Tradução de CLARA ALLAIN.

 

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