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19/06/2012 - 15h15

O conto de fadas de Mario Vargas Llosa

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STUART JEFFRIES
DO "GUARDIAN"

Quando Mario Vargas Llosa visitou o túmulo de Roger Casement, já tinha se rendido ao fascínio do irlandês. "Ele foi um herói, muito imperfeito, muito humano, e, para mim, isso tornou o personagem simpático. Mais que simpático", diz o Prêmio Nobel na sede de sua editora em Londres. "Mas certas pessoas têm dificuldade em aceitar heróis que não sejam perfeitos."

No cemitério Glasnevin, em Dublin, Vargas Llosa encontrou o túmulo do patriota irlandês enforcado pelos britânicos em 1916. "Foi muito triste, porque sempre há flores nos túmulos dos líderes da rebelião irlandesa, à sua volta, mas não há uma única flor na sepultura de Casement."

A epígrafe do novo romance de Llosa sobre a vida de Casement, "O Sonho do Celta", é do escritor uruguaio José Enrique Rodó: "Cada um de nós é, sucessivamente, não um, mas muitos. E essas personalidades sucessivas que emergem uma da outra tendem a apresentar os contrastes mais esdrúxulos e espantosos entre si."

Daniel Marenco - 14.out.2010/Folhapress
Retrato do escritor peruano Mario Vargas Llosa no Hotel Intercity, em Porto Alegre
Retrato do escritor peruano Mario Vargas Llosa no Hotel Intercity, em Porto Alegre

Foi isso o que cativou Vargas Llosa: os muitos contrastes surpreendentes de Roger Casement. Homossexual que ocultou o fato e pilar do establishment (Casement recebeu o título de cavaleiro por ter exposto abusos dos direitos humanos cometidos no Congo e na Amazônia) que tentou explodir o mesmo establishment, rebelde irlandês que tentou impedir a insurreição irlandesa (porque pensou que, sem o apoio da Alemanha, a Revolta da Páscoa [de 1916] fracassaria).

Um homem que morreu mártir, mas não pôde compartilhar a busca de martírio de seus correligionários. "Acho que ele nunca será inteiramente aceito", diz Vargas Llosa. "Sempre haverá uma relutância em aceitar essa complexidade, que é a complexidade da natureza humana. Não somos perfeitos, e essa imperfeição não é tolerável em nossos heróis."

Casement é um tema ideal para Vargas Llosa, entre outras razões porque existem vários paralelos entre o irlandês relegado ao descaso e o peruano festejado. Como seu protagonista, Vargas Llosa é um aventureiro que já percorreu o mundo, facilmente poliglota, alguém que em seu país natal diz verdades ao poder, escritor que não tem medo de fazer críticas contundentes a líderes políticos de outros países.

Como Roger Casement, também Vargas Llosa é um emaranhado de paradoxos. Quando nos encontramos, ele se mostra absurdamente elegante --blazer esporte, cabelos cuidadosamente penteados, charme sofisticado--, mas este é também o homem que deu um soco em Gabriel Garcia Márquez, seu rival pelo título de maior escritor da América Latina.

Quando conversa comigo, Vargas Llosa é cortês e pudico --mas este é um homem que converteu sua própria tórrida história sexual passada em ficção e que, em seus piores momentos, foi responsável por trechos eróticos bombásticos. Como Roger Casement, voltou-se à política na meia-idade, com consequências desastrosas (ele ainda recua, aflito, quando menciono sua candidatura presidencial nas eleições peruanas de 1990); diferentemente de Casement, ele viveu para arrepender-se desse equívoco.

"Estarei me tornando um fanático?" Vargas Llosa faz Roger Casement perguntar-se, em dado momento. Casement permanece até certo ponto um estranho para ele próprio. Nenhum protagonista anterior de Vargas Llosa --quer fosse o monomaníaco líder de um movimento milenarista, o ditador iludido, o guerrilheiro gay ou o artista utópico-- teve uma personalidade tão complexa ou foi capaz de ser ao mesmo tempo enigmático e amável.

Apesar de todas as falhas de "O Sonho do Celta" (diálogos insossos, caráter repetitivo, descrição direta ao invés de dramatização bem-sucedida dos momentos mais poderosos da história), o livro tem o herói mais convincente e fascinante de toda a obra de Vargas Llosa.

Considere-se a homossexualidade de Casement. "Todos os depoimentos retratam uma pessoa muito cortês, tímida, alguém que corava ao ouvir palavrões", diz Vargas Llosa. "Assim, a leitura de seus diários provoca um choque --a vulgaridade do texto, as obscenidades."

Teriam os chamados "Diários Negros" sido fabricados pela inteligência britânica para jogar por terra o apelo por clemência a Casement? "Minha impressão é que os diários são autênticos -- ele os escreveu--, mas não creio que ele tenha vivido as experiências que descreve." Tendo, possivelmente, criado ficção a partir de suas aventuras sexuais, Casement teria deixado os diários em seu apartamento para serem descobertos pela Scotland Yard? "Acho que é absolutamente impossível saber de modo definitivo."

Daniel Mordzinski/Efe
Mario Vargas Llosa (esq.) conversa com escritor e ex-ministro de Cultura espanhol, Jorge Semprún
Mario Vargas Llosa (esq.) conversa com escritor e ex-ministro de Cultura espanhol, Jorge Semprún

Essa impossibilidade de saber os fatos sobre Casement com certeza também atraiu Vargas Llosa. "Não é negativo o fato de um clima de incerteza pairar sobre Roger Casement, como prova de que é impossível conhecer definitivamente outro ser humano --uma totalidade que sempre escapa nos vãos das redes teóricas e racionais que buscam capturá-la", ele escreve no epílogo do livro.

A convicção duradoura de Vargas Llosa, nas muitas obras de ficção que ele já escreveu sobre figuras históricas reais, é que existem outras redes. "Tomei muitas liberdades", ele diz, rindo. "Na ficção, você não é limitado pelos fatos reais. Pode manipular a realidade, pode inventar sem ser desleal à essência da história. Acho que provavelmente recebemos uma impressão muito mais real do que estava acontecendo nas guerras napoleônicas na Rússia com a leitura de Tolstói que com a leitura dos historiadores."

NOBEL

Quando Vargas Llosa recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 2010, a Academia Sueca elogiou "sua cartografia de estruturas de poder e suas imagens contundentes da resistência do indivíduo, sua revolta e sua derrota". Essa descrição ainda poderia aplicar-se a "O Sonho do Celta", do mesmo modo como se aplicou a seu romance de 1984 sobre um movimento milenarista, "A Guerra do Fim do Mundo".

Baseado em acontecimentos ocorridos na Bahia no final do século 19, o livro focou o pregador carismático Antonio Conselheiro, que exorta seus seguidores a erguer uma cidade nova, desafiando um governo nacional que decide destruir a ele e a sua utopia. Vargas Llosa em vários momentos cedeu à atração de figuras históricas fanáticas, como essa, que estão fora de sintonia com a sociedade.

Em "O Paraíso na Outra Esquina" (2003), por exemplo, ele se deixou fascinar pelo pintor Paul Gauguin. "Gauguin considerou que a grande arte necessitava de povos bárbaros", diz ele, "que civilização demais era o fim da grande arte. A arte negra foi descoberta após Gauguin e devido a ele. Gauguin foi o primeiro que teve a ideia de buscar as culturas primitivas, porque o poder da criatividade está ali, porque a civilização racional castrou o espírito criativo completamente."

"Casement foi praticamente a mesma coisa. Ele dizia: 'Estas pessoas não são bárbaras. Estamos cometendo atos criminosos contra elas porque elas são pobres e não são tão fortes quanto nós.' Foi realmente uma ideia revolucionária, na época."

Vargas Llosa chegou a Roger Casement não através da conexão peruana, mas pela leitura de uma biografia de Joseph Conrad. "Conrad tinha a ideia muito ingênua de que a colonização estava levando modernidade, cristianismo e comércio a povos bárbaros. Casement ajudou a dar a Conrad uma ideia muito mais realista do que estava acontecendo. Eles se tornaram amigos bastante íntimos. Há uma carta em que Conrad diz a Casement: 'Sem você eu jamais teria escrito 'Coração das Trevas'. Assim, fiquei muito curioso e pensei 'quem é esse Casement', sabe? Comecei a pesquisar."

Alguns críticos acham que o romance de Vargas Llosa é sobrecarregado com os frutos de sua pesquisa, que levou três anos, mas seu sucesso literário foi conquistado inicialmente buscando materiais não nas biografias de outras pessoas, mas em sua própria.

Em 1963, aos 27 anos, ele recebeu o Prêmio Biblioteca Breve e o Prêmio da Crítica Espanhola por seu romance de estreia, "A Cidade e os Cachorros". Ambientado entre cadetes de uma academia militar peruana, o livro é baseado em suas próprias experiências na academia militar Leoncio Prado, em Lima, à qual seu pai o enviou quando ele tinha 14.

Tão mordaz foi o retrato que ele traçou do etos machista e violento da escola que vários generais peruanos tacharam o livro de fruto de uma "mente degenerada", paga pelo Equador para solapar o prestígio do Exército. Mil exemplares do livro foram queimados na academia.

Quando isso aconteceu, Vargas Llosa já tinha trabalhado como repórter policial, estudado em Lima e Madri e tomado a decisão frutífera de abandonar o jornalismo pago para tentar sustentar-se escrevendo ficção.

"Decidi que tentaria ser escritor e consagraria meu tempo e minhas energias à escrita", ele disse a um entrevistador. "Eu sobreviveria fazendo trabalhos marginais. Esse foi um momento muito importante em minha vida." Ele estava casado com uma parente dez anos mais velha que ele. Aos 19 anos, em 1955, tinha fugido para se casar com Julia Urquidi, cunhada de seu tio materno.

O casamento deles durou oito anos e serviu de base para seu romance mais famoso, "Tia Julia e o Escrevinhador" (1977), uma ficção cômica sobre um estudante e candidato a escritor que se apaixona pela cunhada de seu tio e faz amizade com um amalucado autor boliviano de radionovelas. Vargas Llosa dedicou o livro "a Julia Urquidi Illanes, a quem este romance e eu devemos tanto". Mais tarde, Urquidi fez um relato um tanto quanto diferente do relacionamento em seu livro de memórias, "Lo que Varguitas No Dijo" (O que Varguitas não disse).

BORDEL

William Boyd, que adaptou o livro ao cinema, escreveu: "Vargas Llosa vem continuamente celebrando a eletricidade sexual e amorosa entre homens e mulheres --aquele relógio ativo que anima quase todos nós, com efeitos deliciosos, desastrosos, ou as duas coisas". Em "A Casa Verde" (1966), ambientado num prostíbulo na selva, inspirado num bordel descoberto por Vargas Llosa quando era cadete militar, ele descobriu que o bordel era "uma instituição central na vida latino-americana".

Ambos os romances eram profundamente imbuídos de sua admiração por Sartre, Flaubert e Faulkner e das técnicas literárias destes. Então Vargas Llosa nunca foi um escritor do realismo social? "Não, porque o realismo social tenta competir com a sociologia e a história. Acho que a literatura deveria ser mais livre que isso na descrição do mundo real e da experiência real. Não acho que seja possível eliminar a dimensão imaginária no mundo real, que exerce um papel importante na história, e creio que, através da literatura, é possível chegar, mais que de qualquer outra maneira, a essa dimensão imaginária que é uma parte tão importante do caráter de um período histórico."

Com esses livros, além de "Conversa na Catedral" (1969) e "Pantaleão e as Visitadoras" (1973), Vargas Llosa passou a fazer parte do movimento literário peculiar dos anos 1960 e início dos anos 1970, o boom latino-americano. O movimento incluiu Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Julio Cortázar --todos unidos pelo compromisso de fazer ficção experimental e por um engajamento político, algo que era mais raro entre seus contemporâneos europeus ou americanos.

Na realidade, porém, se havia algo em comum entre os membros muito diversos do movimento, que incluía escritores mais velhos como Pablo Neruda e Jorge Luis Borges, era principalmente o impulso que tiveram as vendas de seus livros, graças à sua publicação na Europa e nos EUA na década de 1960.

Em 1990, Vargas Llosa procurou expressar seu engajamento político de uma maneira que não se limitasse à ficção. Concorreu à Presidência peruana pela coalizão de centro-direita Frente Democrática, advogando reformas neoliberais --o triste neologismo "thatcherismo andino". Perdeu a eleição para Alberto Fujimori, peruano de origem japonesa que capitalizou em cima dos receios que as medidas de austeridade propostas por Vargas Llosa despertaram entre os pobres.

Alejandro Balaguer - 22.jun.90/AP
O escritor Mario Vargas Llosa anuncia, em 1990, sua candidatura à Presidência do Peru
O escritor Mario Vargas Llosa anuncia, em 1990, sua candidatura à Presidência do Peru

Os adversários do escritor costumavam ler em público os trechos de teor sexual mais franco dos livros dele, para chocar potenciais eleitores e levá-los a votar contra ele. Mas de onde veio o viés thatcheriano de um homem que, em sua juventude, tinha sido entusiasta de Fidel Castro?

Salman Rushdie o detectou já em 1984 no romance "História de Mayta" (1984), considerando o livro "o primeiro panfleto abertamente de direita" de Vargas Llosa, mas na realidade ele tinha se desviado para a direita muito antes disso: em 1971, ele abandonou seu entusiasmo anterior pela revolução cubana e ironizou García Márquez, chamando-o de "cortesão de Castro".

Após a derrota eleitoral, Vargas Llosa lambeu suas feridas em público, por escrito. Ambientado no Peru durante a insurgência maoísta do Sendero Luminoso e a contra-insurgência dos anos 1980 e 1990, o mistério policial "Lituma nos Andes" (1993) gritou sua frustração com os indígenas de seu país, muitos dos quais não tinham votado nele.

Publicado no mesmo ano, um livro de memórias, "Peixe na Água", incluiu o que um crítico chamou de "queixume épico" sobre o fracasso de sua campanha presidencial. Mais sofisticado foi "A Festa do Bode" (2000), romance sobre a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana (1930-61), em que são imaginados o assassinato do ditador e as consequências duradouras de seu domínio.

Críticos detectaram paralelos entre Trujillo, conforme descrito no livro, e Fujimori, o grande adversário de Vargas Llosa --o caudilho que deve seu poder ao fato de ludibriar seus súditos.

O crítico do "Times Literary Supplement" argumentou que o romance "vai se destacar como o grande romance emblemático do século 20 na América Latina, privando 'Cem Anos de Solidão' desse título". Como Vargas Llosa deve ter tido prazer com essas palavras (se as leu): embora tenha escrito sua tese de doutorado sobre García Márquez, mais tarde, em 1976, na Cidade do México, lhe deu um soco no rosto, por razões que nunca foram esclarecidas.

É possível que a disputa tenha tido alguma relação com algo que Márquez fez com a segunda mulher (e prima-irmã) de Vargas Llosa, Patricia, mãe dos três filhos do escritor peruano. Seja como for, os dois grandes escritores não se falam há mais de 30 anos.

AVENTURAS

Pergunto a Vargas Llosa se há trechos em seu novo romance que podem traçar paralelos com sua própria inadequação à política. Essa possibilidade me ocorreu quando li sobre como Casement se deu conta de sua própria inépcia política. Afinal, Casement foi seduzido por um norueguês a serviço da inteligência britânica, e sua ideia para a revolução irlandesa envolveu a identificação com uma Alemanha cujos soldados estavam tentando matar dezenas de milhares de soldados irlandeses que ainda combatiam pela Grã-Bretanha.

Teria Vargas Llosa sido tão politicamente ingênuo quanto Casement? "Sim, com certeza. Com minhas experiências políticas, aprendi que sou escritor, não político. Parte da razão pela qual tenho vivido a vida que tenho é porque eu queria ter uma vida de aventuras. Mas minhas melhores aventuras são mais literárias que políticas."

Ele recomendaria a conquista do Prêmio Nobel como aventura para um escritor? Vargas Llosa ri: "O Prêmio Nobel é um conto de fadas por uma semana e um pesadelo por um ano. Você não pode imaginar a pressão para dar entrevistas, ir a feiras literárias. O primeiro ano foi muito difícil. Eu mal consegui escrever." Agora, porém, ele está escrevendo outra vez. Após sua aventura irlandesa, o escritor cosmopolita e poliglota que vive em Lima e Madri e que também já viveu em Paris e Londres está voltando para casa na ficção, ambientando seu livro novo no Peru dos tempos atuais.

Uma última pergunta. O pivô de sua briga com García Márquez foi Patricia ou Castro? O romancista de 76 anos faz de conta que não ouviu e se afasta para ser fotografado. Como Vargas Llosa escreve em seu livro mais recente, é impossível conhecer definitivamente outro ser humano. E, poderíamos acrescentar, é ainda mais impossível saber por que um futuro Prêmio Nobel deu um soco em outro.

Tradução de CLARA ALLAIN.

 

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