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05/08/2012 - 08h00

Desassossego criativo

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ELIANE CAFFÉ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"A parada é dura, a luta indigesta e não tem faca na caveira." Foi a frase de boas-vindas de Garrido quando nos encontramos na academia de boxe que ele ergueu debaixo do viaduto Alcântara Machado, na zona leste de São Paulo.

Entrei no espaço fisgada pela imagem inusitada do museu de bonecas encardidas que ornamenta a fachada. Uma estratégia que Garrido usa para chamar atenção dos passantes. E funciona!

Um ringue de boxe ocupa majestoso o centro, junto a aparelhos velhos de ginástica, sala de TV, biblioteca e cozinha. Tudo feito com material sucateado e improvisado. Acima, carros circulam.

Quem frequenta a academia são jovens do bairro, moradores de rua, ex-presidiários, refugiados e forasteiros. Uma verdadeira zona autônoma temporária. Mas, para Garrido, "uma fábrica de campeões ou, no mínimo, um lugar para reciclagem de seres humanos".

Ele vive para o projeto. "Só peço que, quando morrer, enterrem meu coração debaixo do viaduto". O único modo que encontrei para me desprender de seu magnetismo foi convidá-lo para uma parceria criativa. Montamos uma oficina audiovisual, e o ringue se tornou palco para cenas ficcionais com personagens que ali circulam e atores convidados. O resultado foi a série para TV "O Louco dos Viadutos".

O que eu não imaginava àquela altura era que essa experiência levaria a outras oficinas do gênero em zonas de conflito.

Um salto para Alcântara, no Maranhão, e estou em meio a um embate de mais de 30 anos entre quilombolas e os responsáveis pela implantação da base espacial brasileira. É a velha disputa por território. Mas a disparidade dos lados --comunidades centenárias e gestores da mais alta tecnologia-- produz reações surpreendentes.

Um senhor do quilombo, apelidado de Pé de Foice, diz indignado numa roda de bate-papo: "A gente come foguete? Não! A gente come mandioca, jerimum. A base espacial tá querendo empurrar nós pra fazer o plantio na Lua! Só pode!".

Do outro lado, cientistas também renovam seus repertórios. Soube de um engenheiro que tentou convencer a empreiteira a pedir às entidades espirituais dos quilombolas permissão para construir uma ponte de concreto. Só um exemplo de como os polos do conflito tecem curiosos diálogos, entre imaginários. Desse convívio saiu a oficina que gerou o vídeo -ensaio"Céu sem Eternidade".

Novo salto, agora mais perto. Estamos com refugiados que vivem no contrafluxo da capital paulista. Vêm de Angola, do Haiti, da Colômbia, um deles da Palestina. "Sabe a diferença entre refugiado e fugitivo? Entre guerra e conflito? Não? Por isso no Brasil chamam de guerra até briga de marido e mulher. Esvaziam o sentido porque nunca viveram numa guerra."

Com essas questões atravessamos a Sé, a Liberdade, os Jardins e o Brás. No caminho, polêmicas: "O sangue humano grita! Se você mata alguém, aquele sangue grita dentro de você." Outro rebate: "Não acho! Tem quem mate ou mande matar milhões e durma tranquilo; o sangue nunca grita pra eles."

No metrô, o menino angolano mostra, no celular, vídeo com trechos da dança do kuduro. Fazemos um inventário com imagens que eles veem e postam na web. A oficina dura vários dias --uma imersão ainda em digestão, que leva a uma avalanche de ideias.

O que fica dessas expedições são vestígios de várias vidas numa só. Nas entressafras de um filme e outro, essas oficinas têm sido um espaço de desassossego criativo. Feitas com pouquíssimos recursos, as narrativas surgem à flor da pele.

Tal é a intensidade desses encontros que agora me é difícil pensar num set de filmagem sem a inclusão dos territórios onde surgem personagens. Algo como tentar restituir ao cinema aquele caráter épico cada vez mais ausente na produção atual. Como fazer isso acontecer é que são elas.

 

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