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16/09/2012 - 08h00

Leia a introdução de "Coleção Bienal", por Luis Pérez-Oramas

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DE SÃO PAULO

Com a intenção de compartilhar algumas das leituras e referências teóricas que embasaram o pensamento curatorial da 30ª Bienal de São Paulo - A iminência das poéticas, compilamos esta coleção de livros de pequeno formato que reúne textos fundamentais para a curadoria e até agora inéditos em língua portuguesa.

A coleção complementa o catálogo da exposição e é constituída pelos seguintes títulos: Amores e outras imagens, de Filóstrato, o Velho; Os vínculos, de Giordano Bruno; o primeiro tratado dedicado a Frontão, que abre a Réthorique spéculative, de Pascal Quignard; Ninfas, de Giorgio Agamben; A decadência do analfabetismo e A arte de birlibirloque, de José Bergamín.

Para a curadoria, falar (as) imagens foi um leitmotiv sobre o qual elaboramos nosso projeto educativo --chamando-o, inclusive, entre nós, de "projeto Filóstrato". A publicação do livro do autor da segunda sofística, com suas 65 imagens descritas, impunha-se a nós por si mesma. Rosangela Amato aceitou generosamente traduzir do original em grego uma seleção desses quadros, sobre os quais filólogos e pensadores ainda discutem se existiram ou se foram simplesmente o pretexto ideal para a invenção de um novo gênero literário. Em todo caso, é uma certeza factual que as imagens são mudas, que aqueles que se dedicam a produzi-las fazem --como proclamava Poussin-- ofício de coisas mudas. Mas o fato de que elas não cessam de produzir glosas e palavras, textos e polêmicas; de que também sejam objeto de um incessante mister de descrições, no qual chegam a ser o que estão destinadas a ser para nós, confirma a complexa relação entre o verbo e a imagem.

Essa relação, essa equação nunca estável, esse eco de Narciso que não ouve a reverberante palavra da ninfa Eco regula todo o sistema do figurável em nossa cultura. Ela mesma, a possibilidade de um nicho na imagem para o verbo ou de um lugar na palavra para a imagem, é uma potência de vínculo: e são os vínculos a matéria constituinte da 30ª Bienal.

Os vínculos, na medida em que oferecem uma possibilidade para a analogia --que não se refere somente à semelhança, mas sobretudo à diferenciação--, estiveram no coração de nossas motivações na medida em que nos propusemos a realizar uma "bienal constelar". A relativa flexibilidade desses vínculos, a possibilidade de um exercício analógico sem fim é uma das convicções de A iminência das poéticas. Poder-se-ia dizer que a iminência das poéticas não é outra coisa senão esse exercício, esse devir analógico das coisas, dos figuráveis e do dizível. "Nenhum vínculo é eterno", diz Giordano Bruno em seu tratado, "mas há vicissitudes de reclusão e liberdade, de vínculo e de liberação do vínculo, ou mais ainda, da passagem de uma espécie de vínculo a outra".

Como não perceber em nosso exercício curatorial, então, quando propomos esse retorno ao pensamento analógico, que a figura de Aby Warburg, cuja obra final, o Atlas Mnemosyne, constitui uma das mais brilhantes manifestações modernas? A evocação da Ninfa de Warburg na brilhante reflexão de Agamben se justifica como um frontispício teórico de nossa Bienal.

A curadoria da 30ª Bienal estrutura-se sobre algumas convicções lógicas para adentrar o terreno nada lógico das artes: uma delas é que, como Ferdinand Saussure demonstrou para a linguagem, as obras de arte somente significam na medida em que marcam uma diferença e uma distância com relação a outras obras de arte. É no registro da possibilidade permanente de assemelhar-se e diferenciar-se que as obras de arte nos atingem, se fazem em nós e significam conosco e ali encarnam como sobrevivência e alterforma de outras formas.

Dessa certeza estrutural procede, talvez, hoje --quando os artistas retomam a equivalência humanística do Ut pictura poesis [assim como a pintura, a poesia] por meio de práticas conceituais centradas na primazia da linguagem--, a crescente presença de obras que se manifestam como arquivo e atlas. A segunda certeza da curadoria é que as obras de arte, e a própria curadoria, são atos de enunciação, apropriações de linguagem que encarnam em um aqui e agora e em um corpo: que são corpos, inclusive, quando apostam no mito de sua desmaterialização.

Nesse sentido, elas são, como a curadoria, o equivalente a uma voz. Para além de seu destino escritural, Pascal Quignard recorda-nos dois momentos traumáticos na questão da voz: o da "muda vocal", quando a infância perde sua voz aguda e ganha gravidade terrena; e o da escritura, quando o barulho surdo do estilete sobre o papel anula, em seu corte silencioso, a vida da voz: quando escrevo, calo.

Desses problemas, deduz-se a importância dos textos de Quignard e Bergamín. Textos radicais e talvez estranhos para a sensibilidade contemporânea, habituada às simplificações de um meio atormentado por transações políticas e mercadológicas. A curadoria compartilha a certeza de Bergamín de que a cultura morre quando é totalmente submetida à imposição da letra inerte, quando se desvanece em nós a voz analfabeta que jaz desde a mais incerta origem. Também proclama, mesmo em suas cifras menos legíveis, a necessidade de uma inteligência do birlibirloque --curadoria como pensamento selvagem, como inteligência da bricolagem, para evocar Lévi-Strauss--, que se realiza no instante da ocasião e ante a concreção das coisas que resistem com seu impulso de morte, como o touro quando investe contra a metáfora vermelha do toureiro. Finalmente, se falar (as) imagens é um exercício sempre inconcluso, a razão talvez esteja na densidade natural do mundo e na resistência antifilosófica da voz: Frontão envia uma carta a Marco Aurélio na véspera de seu primeiro discurso diante do senado de Roma, no belo texto de Quignard. Não confunda nunca --repreende-o-- a linguagem com seu voo.

Se quisemos algo em A iminência das poéticas, foi tentar seguir ao pé da letra o programa contido em um fragmento de Frontão: não nos identificarmos com a linguagem em flor (os sistemas), nem com a linguagem silvestre (vernácula), mas com a linguagem in germine (germinativa), com a linguagem enquanto está vindo, enquanto é, ainda, iminente.

Os textos mais antigos, de Filóstrato e Giordano Bruno, poderiam então funcionar como a referência histórica e teórica da coleção: textos de enorme influência e grande reputação intelectual, hoje confinados ao esquecimento do grande público leitor. Esses dois livros são testemunho de um mistério: assim como os mitos, cuja origem é impossível discernir na variedade de suas configurações, não deixam de produzir efeitos reais, igualmente, a cultura ocidental da imagem, e sua relação com a voz e com o pensamento, continua sob a influência desses dois textos capitais.

Pode-se dizer que Filóstrato, o Velho, inaugura com seus Eikones [Imagens] uma das formas poéticas mais frequentadas de nossa cultura: a da descrição verbal de imagens puramente figurativas. Essa forma, conhecida como écfrase, deu lugar em nossa cultura a uma possibilidade de materialização e transmissão para a equação insolúvel entre o visível e o legível, entre o visual e o verbal, em meio à qual não podemos deixar de viver. O que o livro de Filóstrato gerou, e ainda sugere, além de uma incomensurável quantidade de cenas de representação, desde os pintores e gravadores da Antiguidade até Musorgsky e Sokurov, é a impossibilidade de distinguir qualquer antecedência entre imagens e palavras. Toda palavra tem por iminência uma imagem, à qual serve como fundação; toda imagem tem por iminência uma palavra, que lhe serve como ressonância.

Quanto a Giordano Bruno, filósofo esquecido mas não menos fundamental, foi Robert Klein que, no século passado, e entre os que renovaram o destino da história da arte como disciplina intelectual, mais claramente expôs o papel-chave de Os vínculos no espaço da cultura visual moderna: "O humanismo havia posto o problema das relações entre a ideia e a forma que a expressa na retórica, na lógica, na poesia, nas artes visuais; havia se esforçado em unir o que e o como, em encontrar para a beleza da forma uma justificativa mais profunda que a necessidade de aparência". Mas, por mais que tenha avançado, nunca negou que, em todos esses campos, "o que se diz" deve existir anteriormente à expressão. Daí que, de um ponto de vista muito simplificado, o humanismo se conclui nas ciências quando o método de pesquisa se torna fecundo por si mesmo, e na arte quando a execução, a maniera, se transforma em um valor autônomo. Quando, em 1600, a consciência artística havia chegado a esse ponto, não encontrava nenhuma teoria da arte que pudesse dar conta dela. Não restava mais que a antiga magia natural, ou seja, uma estética geral que ignorava a si mesma e que Giordano Bruno se precipitou em desenvolver no magnífico esboço que intitulou Os vínculos.

Bem iniciada esta segunda década do século 21, ainda vivemos sob a égide estética dessa cultura da fascinação: não parece afirmar outra coisa nossa civilização numérica de relacionamento digital, com a ilusão de comunidade que se esconde por trás das "redes sociais" e que não faz mais do que gerar uma modalidade de exibicionismo tão furtivo quanto persistente. Dessa forma, pareceria que nossa relação de fascinação com o mundo é cada vez mais dependente de uma mediação escritural, codificada, metaletrada. Os ensaios de José Bergamín, já clássicos, dedicados a reivindicar a viva voz contra a letra morta, denunciando a decadência do analfabetismo e defendendo a necessidade de uma cultura da voz, assim como seu tratado sobre a tauromaquia, arte de birlibirloque, representam um manifesto a favor da sobrevivência da natureza, contra o esquecimento da infância e da experiência. Meditações gerais dissimuladas em seu circunstancial objeto textual, ambos os ensaios, além de serem peças supremas da literatura espanhola moderna, são de uma surpreendente atualidade e pertinência.

Do grande filósofo Giorgio Agamben, autor de Infância e história, ensaio que aborda o moderno esquecimento da experiência, apresentamos um dos ensaios mais recentes intitulado Ninfas. Central no pensamento da 30ª Bienal, a figura de Aby Warburg e seu Atlas Mnemosyne também o é nesse ensaio de Agamben, que parte da visão da prancha 46 da referida obra, ineludível para o pensamento atual da arte. A Ninfa clássica, pretexto e objeto, em Warburg, de uma obsessiva reflexão sobre a imagem e a fórmula do pathos, é aqui objeto de análise e pensamento como figura tutelar da "vida após a vida" [nachleben] das imagens: encarnação emblemática da sobrevivência e alterforma que dá lugar à continuidade do visível em nossa cultura.

Finalmente, o primeiro tratado da Réthorique spéculative, de Pascal Quignard --dedicado a Marco Cornélio Frontão, retórico esquecido entre as ruínas e os fragmentos da Roma clássica, tutor do imperador Marco Aurélio--, transforma-se no pretexto de um dos ensaios mais belos e brilhantes da literatura francesa contemporânea: unem-se nessa escrita fulminante e suave, rebuscada e precisa, as reflexões centrais da 30ª Bienal: a primazia da voz sobre a letra, o impulso antifilosófico da imagem, a novidade do arcaico que jaz no fundo de nosso alento, a entonação e a afasia, a fascinação e a metamorfose, a nudez da linguagem e a cena invisível da origem.

 

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