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24/10/2012 - 15h38

Caminhando pela Colômbia entre os guerrilheiros

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MICHAEL JACOBS
DO "OBSERVER"

O som de tiros ao longe perturbou a paz matinal num ensolarado vale de reluzentes cores tropicais. Uma jovem de longos cabelos castanhos bloqueava a trilha sombreada por samambaias. Ela vestia um traje camuflado e portava uma metralhadora. A sigla sobre suas lapelas a identificava como membro das Farc, o mais famoso exército guerrilheiro da Colômbia. Ela estava nos mandando parar. Tinha recebido ordens do subcomandante.

Jorgen Braastad/Associated Press
Policial guarda hotel nas proximidades de Oslo onde delegações da Colômbia e das Farc falaram a jornalistas
Policial guarda hotel nas proximidades de Oslo onde delegações da Colômbia e das Farc falaram a jornalistas

Eu estava voltando à localidade andina de San Agustín, junto com um amigo de Bogotá, Julio, e um guia local que havia nos conduzido até a remota e pantanosa nascente do mais longo rio colombiano, o Magdalena. A nascente era o ápice de uma jornada que eu passara anos planejando --percorrer a extensão total de um rio para mim emblemático de tudo o que há de sombriamente sedutor na América do Sul. Mas só na etapa final da viagem eu havia tido uma real sensação de perigo.

Os últimos três dias haviam sido de medo praticamente constante. A cavalgada por uma íngreme e escorregadia trilha na mata já tinha sido bastante assustadora, mas o que tornou a tensão quase insuportável foi a descoberta, logo depois de nos encaminharmos para as montanhas, de que as Farc estavam ao nosso redor. Ainda na noite anterior, um grupo de guerrilheiros fortemente armados apareceu da completa escuridão para nos surpreender na isolada fazenda onde havíamos nos hospedado. Um homem de comportamento errático, chamado Marlon, havia nos submetido a um caótico discurso sociopolítico, após o qual todos os guerrilheiros foram embora, para nosso alívio.

Mas, com o som daqueles tiros matinais, meus piores temores estavam voltando. Eu estava preocupado de que tivéssemos sido apanhados em um fogo cruzado com o Exército colombiano, ou então que os guerrilheiros tivessem ouvido nas últimas horas que eu não era um turista inocente, e sim um escritor com contatos no governo colombiano. Jenny, a guerrilheira que nos detinha, e que eu identifiquei como namorada de Marlon, não podia nos dar nenhuma ideia sobre o que estava acontecendo. Tentamos iniciar uma conversa com ela. Como a maioria dos seus companheiros, ela devia ter pouco mais de 18 anos, mas revelou que já tinha mais de 13 anos nas Farc. Ela foi provavelmente um dos muitos integrantes da guerrilha que haviam sido roubados das suas famílias.

O subcomandante finalmente chegou, desculpando-se pelo atraso por estar treinando tiro. Após algumas amabilidades, ele apresentou os planos das Farc para construir um centro para visitantes, para alargar e melhorar a trilha onde estávamos, e para tornar a área como um todo mais atraente para os turistas. Aí ele fez uma pergunta que tornou o encontro ainda mais irreal. Ele quis saber se eu falava alguma coisa de inglês. Quando admiti ter um conhecimento razoável da língua, ele pareceu contente.

"Normalmente", afirmou, "cada divisão das Farc tem seu falante de inglês, mas estamos sem nenhum no momento. Precisamos de alguém para traduzir um textinho para nós. Será que você poderia ajudar?".

"É claro", respondi, lisonjeado por ter sido confundido com um espanhol, e quase satisfeito por ser útil. Embora eu tivesse sérias dúvidas de que algum dia voltaria para casa, os guerrilheiros estavam sendo infalivelmente educados e amistosos em seu trato conosco.

Olhei o folheto de quatro páginas que o subcomandante tirou do bolso do seu colete de munição. Era o manual de montagem de uma mira a laser para fuzil. "Meu inglês técnico não é tão bom", confessei, "e isto está em inglês americano, que eu acho particularmente difícil". Talvez por causa do meu medo, a natureza moralmente questionável do que me pediam para fazer ainda não havia ficado clara para mim. "Não se preocupe", tranquilizou-me o subcomandante, "vamos lhe mostrar como funciona um fuzil, e vamos ajudá-lo com os termos mais especializados".

Enquanto éramos levados para uma cabana improvisada com ampla vista panorâmica para o lindo vale, o absurdo da situação na qual havíamos caído se misturava ao medo. Eu quase precisava conter o riso ao me sentar numa mesa ao ar livre para iniciar aquilo que Julio chamou de "nossa lição de casa".

Julio se dispôs a escrever minha tradução, enquanto Jenny me daria os termos técnicos corretos para as diferentes peças da metralhadora que ela portava. Iniciei a tarefa como um verdadeiro profissional, buscando um espanhol eloquente e fluente para aquele inglês capenga e travado. Felizmente, logo eu percebi que não tinha a mínima ideia a respeito do assunto daquele folheto.

Jenny achou que poderia ajudar se desembalasse a mira a laser, e assim ela fez, como se fosse uma criança que ganhou um brinquedo novo. Impaciente demais para esperar até que eu tivesse entendido as instruções, ela tentou desajeitadamente montar as várias peças e então prender a mira ao fuzil. Uma onda de carinho paternal tomou conta de mim ao observá-la, seguida por uma tensa irritação quando ela começou a derrubar no chão os componentes minúsculos e sem dúvida insubstituíveis. "Por favor, tome cuidado", adverti. "Se perdermos qualquer peça, podemos jogar todo o troço fora."

Reprodução/Youtube/Noticiero LA F.m.
Líder das Farc confirma diálogo de paz em vídeo; guerrilha critica Brasil
Líder das Farc confirma diálogo de paz em vídeo; guerrilha critica Brasil

Finalmente, começamos a progredir, apesar das ocasionais visitas de sorridentes amigas de Jenny que desejavam conversar conosco. A Espanha é coberta de florestas? O que comemos por lá? Eu estava pegando a receita de um doce feito de cana de açúcar e pênis de touro quando um suarento Marlon apareceu, trazendo uma nota de horripilante seriedade à ocasião. "Pessoalmente", resmungou, inspecionando a mira a laser semimontada, "prefiro matar as pessoas a curta distância, quando posso ver seus rostos. Mas a beleza desse equipamento é que você pode disparar com precisão a 150 metros, e no escuro".

CONSCIÊNCIAS

A partir daquele momento, eu só conseguia pensar em como deixar a área o mais rapidamente possível. "A lição de casa terminou", anunciou Julio depois de eu me apressar nas duas páginas finais do manual, sem me preocupar em conferir o que eu estava ditando. O subcomandante nos agradeceu enormemente, enquanto eu pedia desculpas por eventuais imprecisões. Ele esperava que voltássemos para rever todos eles um dia, "se vocês não se importarem em aturar nossas humildes tendas construídas com galhos e folhas". Nós o agradecemos por um convite tão tentador, e então nos pusemos a descer a montanha.

"Salvamos nossas consciências", sussurrou Julio assim que nos pusemos fora do campo de visão dos guerrilheiros. Ele explicou que havia feito pequenas mudanças na minha tradução, as quais haviam tornado completamente inútil aquele texto por si só já truncado. Felizmente, ele havia enxergado o que, no meu medo, eu havia deixado de lado. Sua consciência o impediu de auxiliar pessoas que haviam causado tanto sofrimento e terror na Colômbia, que estavam envolvidas com o narcotráfico, que sequestravam crianças.

Nos dias que se seguiram, eu continuaria remoendo essas implicações, até que, depois do nosso retorno a Bogotá, chegou uma notícia daquela área que me faria ver todo o incidente sob outra luz.

Nosso guia nos contou que o Exército havia chegado lá e provavelmente matado todos os guerrilheiros que havíamos conhecido. Eu não conseguia tirar da minha cabeça a imagem de Jenny se atrapalhando com uma mira a laser e então morrendo pelo interesse de uma causa tão confusa que havia passado a abraçar, veja só, a promoção do turismo. Todos os sentimentos sobre o que havia de certo e errado em traduzir para as Farc deram lugar a outra coisa: uma esmagadora sensação de pena.

Tradução de RODRIGO LEITE.

 

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