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04/02/2013 - 15h00

O exílio de Kurt Schwitters, um mestre modernista

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RACHEL COOKE
DO "OBSERVER"

A única foto conhecida do artista alemão Kurt Schwitters no lugar onde, enfrentando todas as dificuldades possíveis, ele trabalhou sobre aquela que esperava que fosse sua obra-prima final --o Paiol Merz em Elterwater, nas proximidades de Ambleside-- foi feita em algum momento de 1946, e quase todos os aspectos dela parecem ter sido pensados para produzir uma impressão enganosa.

Para começo de conversa, há o tempo idílico, com o sol brilhando sobre as montanhas como uma bênção. Há o próprio Schwitters, que, de terno de lã e gravata, mais parece um cervejeiro de Manchester passando um fim de semana no local que um artista em busca de um ateliê. Ele até tem companhia: uma pintora amiga, Hilde Goldschmidt, também refugiada da Alemanha nazista, parecendo alegre em vestido de mangas curtas e chapéu de aba larga. Para completarem a mentira, só precisariam de uma cesta de piquenique e uma garrafa de cerveja leve resfriada no riacho.

Efe
Fotografia da obra "Irgendetwas mit einem Stein" do artista Kurt Schwitters (1887-1948) exposta no Tate de Londres
Fotografia da obra "Irgendetwas mit einem Stein" do artista Kurt Schwitters (1887-1948) exposta no Tate de Londres

Quando chego a Elterwater, penso comigo mesma que uma foto mais fiel à realidade teria captado Schwitters num dia como este: com frio de praticamente zero graus, neve no chão e mais neve misturada com chuva caindo diagonalmente, sob o efeito do vento. Ele estaria dentro do paiol, não se divertindo do lado de fora, e, como um sem-teto, estaria envolto em todas as camadas de lã e "tweed" que possuísse, com uma boina cobrindo as orelhas. Suas calças estariam sujas com respingos de cimento, e seus ombros, sujos de gesso. É claro que Hilde estaria em casa, diante da lareira.

De certo modo, portanto, se poderia dizer que tive sorte com o tempo hoje. "É útil, na realidade", comenta Ian Hunter, um dos codiretores do Littoral Trust, a organização que cuida do Paiol Merz. "Ajuda você a imaginar como as coisas podem ter sido para Schwitters." Ele olha para mim e ri. "Mas admito que está fazendo um frio terrível."

Distante, dilapidado e quase esquecido, o Paiol Merz é uma metáfora perfeita da vida e reputação do homem que trabalhou sobre seu interior. Kurt Schwitters é um artista influente e reverenciado por outros artistas. Figura chave do dadaísmo, criou algumas das colagens mais belas e complexas do século 20, e, com isso, abriu o caminho para a pop art e a arte povera.

Mas na Inglaterra, país que lhe deu abrigo nos últimos oito anos de sua vida, ele ainda é uma espécie de segredo, algo que, para alguns, é inexplicável. Mesmo os aficionados da arte que visitam Brantwood, a casa na vizinha Coniston onde Ruskin quase enlouqueceu, tendem a não ter este santuário em seus itinerários, apesar de ele ser igualmente comovente, à sua própria maneira.

Como Ian Hunter é o primeiro a admitir, não há muito que ver dentro da construção. Schwitters morreu em janeiro de 1948, tendo trabalhado sobre seu projeto final por apenas três meses, e a única seção daquela que ele visualizava como uma espécie de gruta modernista, com paredes repletas de esculturas e "objets trouvés", foi removida para a Hatton Gallery, em Newcastle, em 1965, para ficar em segurança. Mas o ambiente soturno exerce um efeito sobre o visitante, mesmo assim.

Schwitters trabalhou como um possuído neste lugar; tinha passado o verão de 1947 acamado, sofrendo algum tipo de hemorragia, e sabia que seu tempo se estava esgotando. Seus dedos deveriam estar dolorosamente inflamados pelo frio, e seus pés provavelmente doíam. Com mau tempo, o paiol tende a ficar inundado, de modo que Schwitters frequentemente trabalhava em pé dentro de água fria. É provável que também tenha passado fome às vezes. Ele estava paupérrimo; na Abbot Hall Art Gallery, em Kendal, há um desenho de Francis O'Neill, proprietário de um café em Ambleside, que Schwitters fez em troca de pão.

Hunter chama minha atenção para alguns detalhes: uma pequena clarabóia que Schwitters mandou construir num canto do telhado inclinado do paiol, e uma curva solitária de cimento. Ele fala de como poderia ter ficado o Paiol Merz se tivesse sido concluído: uma caverna repleta de falsos tetos e protuberâncias como estalactites, em parte bizarria e em parte templo. Parece justo dizer que Hunter é obcecado por Schwitters. Quando ele primeiro viu a Parede do Paiol Merz em Newcastle, muitos anos atrás, a recebeu como uma revelação. "Tive um senso palpável do legado do dadaísmo", ele conta. "Foi algo imediato."

Ele e sua codiretora, Celia Larner, ambos administradores de arte que sonharam por muito tempo em encontrar uma maneira de construir o legado de Schwitters, conseguiram finalmente pôr as mãos no paiol quando, em 2006, um neto de Harry Pierce, o paisagista a quem a construção pertencia na década de 1940, ofereceu vendê-la a eles. (Consta que, depois de prometer ao artista que preservaria o conteúdo do paiol após a morte dele, Pierce doou a parede à galeria Hatton em troca de uma garrafa de champanhe.)

"Era muito dinheiro para nós, mas sabíamos que precisávamos encontrar uma maneira", diz Larner. Eles acabaram sendo financiados pela Fundação Northern Rock e por Damien Hirst, que considera Schwitters uma de suas influências.

Desde então, eles a converteram em centro de estudo --um lugar que artistas e estudantes visitam em busca de inspiração. Mas não está sendo fácil. Eles estão envelhecendo, e em 2011 o Conselho de Artes da Inglaterra cortou por completo a dotação de £37 mil que financiava o centro.

No momento, Hunter e Larner estão mantendo o paiol com seus recursos pessoais, e embora estejam dispostos a fazer isso --a devoção deles a Schwitters é tão intensa que estão até lançando uma campanha levemente esdrúxula para persuadir o Ministério do Exterior a lhe dar um passaporte britânico póstumo--, eles acham incompreensível que isso seja necessário.

"Este é um local de peregrinação", diz Hunter. "As pessoas vivem pulando o muro. Mas é também um local de importância nacional, e deveria ser visto como tal pelo establishment artístico. Para começar, Schwitters estava presente na Alemanha em 1918, no início do dadaísmo; ele nos garante uma conexão direta com o modernismo europeu. Em segundo lugar, trata-se de cumprir os desejos dele. Ele queria que seu Paiol Merz fosse preservado. Ele dizia: 'Só daqui a 60 anos as pessoas vão entender quem eu sou'. Bem, bingo! Já se passaram 62 anos."

FIO CONDUTOR

A esperança deles é que chegar ajuda através da Tate Britain, onde dentro em breve será inaugurada a primeira grande exposição dos trabalhos da última fase de Schwitters. Pelo menos um pouco do crédito por esse fato histórico deve ser atribuído a Hunter e Larner. Quando Nicholas Serota, o diretor do Tate, perguntou o que podia fazer para ajudar a sua causa, eles responderam: "Precisamos de uma mostra; desde 1985 não é feita uma grande retrospectiva de Schwitters". Se a exposição levar as pessoas a compreender a importância de Schwitters, eles pensam, será mais fácil levantar dinheiro. "A influência de Schwitters é notável", comenta Hunter. "Ele é como um fio condutor que percorre a arte britânica de Richard Hamilton em diante."

Ele tem razão, mas por que falar apenas na arte britânica? Quem mais, senão Schwitters, vem à mente quando se vêem as "combines" criada pelo grande artista americano Robert Rauschenberg na década de 1950? (Em 1959, depois de ver uma exposição do trabalho de Schwitters, Rauschenberg comentou: "Me senti como se ele tivesse criado tudo isso só para mim"). Por outro lado, Schwitters não precisa de associações com nomes famosos para reforçá-lo.

Ele pode falar por si mesmo. Para começar, há sua obra. As melhores de suas colagens são maravilhosas: hábeis e harmoniosas. As coisas que ele é capaz de fazer com alguns pinos de boliche de madeira, um papel de bala Quality Street e um bilhete velho de ônibus! E há sua vida, que é ao mesmo tempo épica e bizarra, como se ele fosse fruto de mitos e fábulas, ao invés de filho de uma cidade alemã provincial. Quando vi um trabalho de Schwitters pela primeira vez, alguns anos atrás, foi na escadaria dos fundos da Abbot Hall, onde eu estava passando alguns momentos enquanto esperava a chuva parar.

Uma anotação ao lado do trabalho explicava quem era o artista e de que modo ele tinha ido ao Lake District viver o fim de sua vida na penúria. Ainda me recordo do meu espanto: a ideia de que um importante pintor modernista certa vez venceu o concurso anual de pintura de flores de Ambleside. Se você inventasse uma história desse tipo, ninguém acreditaria.

Kurt Schwitters nasceu em Hanover, em 1887, filho único de Henriette e Edward Schwitters, um casal próspero cuja renda vinha de imóveis. Ele estudou arte na Academia de Dresden e então retornou a Hanover e tornou-se pintor expressionista. Com o início da Primeira Guerra Mundial, tudo mudou. "As coisas viraram uma turbulência terrível", ele contou. "O que eu tinha aprendido na Academia não me servia de nada. Tudo tinha se rompido, e era preciso criar coisas novas a partir dos fragmentos. E isso é Merz."

A palavra Merz não significa nada; é uma palavra de "nonsense" (é derivada do Commerzbank, um anúncio do qual aparece em uma das primeiras colagens de Schwitters). Mas depois de 1918, tudo o que Schwitters fez foi Merz, quer fosse periódico, pinturas ou poemas. Ele foi o criador e expoente único do movimento. "A palavra Merz denota basicamente a combinação de todos os materiais concebíveis para finalidades artísticas", disse ele.

"E, tecnicamente, o princípio da avaliação igual dos materiais individuais. Uma roda de carrinho de bebê, uma tela de arame, barbante e algodão são fatores que têm direitos iguais aos da tinta." Em outras palavras, era possível criar arte com as coisas que a maioria das pessoas enxergava como lixo. Quase que da noite para o dia, Schwitters virou criador de colagens.

Em Berlim, onde foram expostos seus novos trabalhos, ele fez amizade com Hans Arp e começou a colaborar com várias publicações dadaístas (ele foi autor altamente motivado de poesia dadaísta, mais notavelmente um poema sonoro épico intitulado "Ursonate", que escreveu ao longo de dez anos, e gostava de apresentar seus poemas em público). Mas não se tornou membro oficial do dadá de Berlim; seu pedido de ingresso no grupo não foi aceito. Não que isso o tivesse desanimado.

Alastair Grant/Associated Press
Funcionária do Tate observa série de fotos de Kurt Schwitters feita quando o artista recitava o poema "Ursonate"
Funcionária do Tate observa série de fotos de Kurt Schwitters feita quando o artista recitava o poema "Ursonate"

Em 1920 Schwitters começou a trabalhar sobre uma série de Colunas Merz, e foram essas estruturas que inspirariam aquela que é largamente vista como sua obra-prima perdida: a Merzbau, que ele construiu dentro da residência familiar em Hanover, no endereço Waldhausenstrasse 5, e que foi destruída pela RAF em 1943.

Schwitters começou a trabalhar sobre a Merzbau em 1923 e terminou por volta de 1933. O trabalho acabou tomando conta de seis ambientes da casa. Obviamente ele não podia invadir as partes da construção que eram alugadas a inquilinos, mas, a julgar por suas cartas, anexou pelo menos dois cômodos do apartamento de seus pais (seu próprio apartamento ele dividia com sua mulher, Helma, e o filho deles, Ernst). Pobres pais. Será que ele os avisou, ou simplesmente lhes apresentou o ato já consumado? ("Mutti! Papa! Entrem! Eu mudei um pouco a decoração da sala.") Suas modificações eram no mínimo dramáticas.

No Sprengel Museum, em Hanover, que abriga o imenso arquivo de Schwitters, há uma reconstrução do Merzbau, baseada nas três fotos remanescentes do lugar. Ela proporciona ao visitante um senso poderoso de como ter sido o original. Branca e angular, é fantástica; num primeiro momento, você se sente como se tivesse caído numa fenda rochosa.

As paredes desapareceram atrás de uma série de grutas, colunas, prateleiras e cubos construídos na casa. Uma das colunas ostenta uma máscara mortuária do primeiro filho de Schwitters, Gerd, que morreu ainda bebê; já as grutas são temáticas, sendo algumas dedicadas a colegas de Schwitters, como Mondrian e Arp, outra a Goethe e ainda outras ao amor e à guerra. O efeito de toda essa geometria estranha é desorientador e paradoxal. Ao mesmo tempo em que você tem a sensação aflitiva de que o piso está encolhendo e o teto vindo cada vez mais para baixo, a própria estrutura em si passa a impressão de ser infinita.

Talvez tenha sido exatamente esse o efeito que Schwitters buscava. Durante a década em que trabalhou sobre ela, a Merzbau mudou sempre; ele dizia, brincando, que ela cresceria até chegar a Berlim. Schwitters possuía uma qualidade de tartaruga; como os acumuladores obsessivos vistos em documentários do Channel 4, ele vivia construindo uma nova carapaça para si.

Schwitters já se tornara famoso na Alemanha, e não lhe faltava trabalho (ele tinha um emprego adicional que lhe garantia uma renda útil, como tipógrafo oficial da Câmara de Hanover). Mas as circunstâncias estavam prestes a intervir novamente. Após a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, os nazistas decidiram eliminar o que viam como sendo "entartete Kunst", ou arte degenerada. O trabalho de Schwitters foi ironizado, confiscado e, finalmente, proibido. Em janeiro de 1937, ao ser informado que a Gestapo queria falar com ele, Schwitters fugiu para a Noruega. Ernst já estava lá, mas Helma permaneceu em Hanover para cuidar dos pais deles. Alguns meses depois de sua fuga, Hitler foi fotografado em frente a uma de suas colagens, numa mostra de arte degenerada em Munique.

Na Noruega, Schwitters começou a trabalhar sobre uma segunda Merzbau; esta seria portátil, algo que reforça minha analogia da tartaruga. Mas em 1940, quando os nazistas invadiram, ele foi forçado a abandoná-la, fugindo para Edimburgo no último navio a deixar o porto, uma embarcação quebra-gelo chamada Fridtjof Nansen. Quando desembarcou, trazia apenas dois camundongos brancos e uma escultura feita de madeira de bétula. No Reino Unido, porém, ele foi visto como estrangeiro inimigo. Ele seria internado em vários campos, até finalmente ser enviado a Douglas, na ilha de Man, onde permaneceria até novembro de 1941.

Talvez não tenha sido tão ruim quanto se poderia imaginar. "Por mero acaso, o campo de Hutchinson estava cheio de artistas e intelectuais", conta Gretel Hinrichsen, cujo marido, Klaus, ficou detido no campo com Schwitters. "Eles eram a 'crème de la crème'." Historiador de arte, Klaus comandava a "universidade" do campo, e, graças a isso, um comandante que via seu trabalho com bons olhos lhe deu uma sala na qual trabalhar. Klaus, por sua vez, deixava Schwitters usar a sala como ateliê (em agradecimento a seu amigo, Schwitters pintou seu retrato; a obra fará parte da mostra na Tate). "Eles passaram bons momentos, de certo modo", comenta Gretel.

"Ficavam hospedados em pensões à beira-mar, e, como tinham os mesmos interesses, davam-se bem. Mas não era fácil trabalhar. Ao invés de telas, usavam pedaços de madeira ou linóleo --qualquer coisa que conseguissem encontrar. Usavam óleo tirado de latas de sardinhas." Ela dá risada. "Meu marido tinha sobrancelhas espessas, e usavam os pelos delas para fazer pincéis."

Como não havia gesso disponível, Schwitters fazia esculturas a partir de mingau de aveia, que começava a se decompor em pouco tempo. "Ele juntava o que sobrava no prato das pessoas e com isso fazia esculturas em seu sótão. E elas fediam, é claro."

Depois de libertado, Schwitters mudou-se para Londres, onde tentou subsistir fazendo retratos encomendados e retomou seus trabalhos com Merz. Não foi fácil. A Modern Art Gallery de Jack Bilbo lhe dedicou uma exposição individual, para a qual o célebre crítico Herbert Read escreveu a introdução do catálogo -- "um poeta paralelo a James Joyce", escreveu--, mas foi vendida apenas uma colagem. Para aumentar seu sofrimento, durante essa exposição Schwitters recebeu um telegrama informando-o que, na Alemanha, Helma tinha morrido de câncer e que a Merzbau e sua residência tinham sido destruídos num bombardeio.

MARAVILHOSA

Então chegou a salvação. Havia uma mulher jovem --tinha metade da idade de Schwitters-- chamada Edith Thomas, mas que ficou mais conhecida como Wantee (Schwitters lhe deu o apelido porque ela vivia lhe oferecendo chá --"want tea?"--; ela o chamava de Jumbo). Os dois viviam na mesma pensão em Bayswater, e, quando a guerra finalmente terminou, decidiram tirar férias no Lake District (um parque nacional).

Para pagar a viagem, venderam a coleção de selos de Schwitters. Wantee era uma moça londrina comum --trabalhava na mesa telefônica da Marks & Spencer-- e não sabia nada sobre arte de vanguarda. Mas amava Schwitters e tinha fé nele. Quando ficou claro que ele gostava de Ambleside e que não desejava outra coisa senão ficar lá e trabalhar, ela decidiu ficar com ele.

"Ela era maravilhosa", comenta o crítico William Feaver, que conheceu Wantee perto do fim da vida dela. "Sempre achei que não adianta nos indignarmos com o tratamento dado a Schwitters. Ele era estranho e desorganizado, mas se sentia satisfeito com a vida e tinha Wantee. Ela adorava cuidar de homens mais velhos. Ela era assim, simplesmente." Gretel Henrichsen acha que Schwitters teria morrido anos antes, não fosse por ela. "Wantee não atuava como sua enfermeira. Eu já a vi descrita assim, e é bobagem total. Mas ela cuidava dele, sim. É que ela o adorava, o tinha em altíssima conta. Não havia uma pessoa com quem topasse a quem ela não falava sobre Schwitters. Era a mesma coisa, em qualquer lugar para onde fosse. Nenhum taxista ficava a salvo."

Wantee conseguiu até aceitar as tendências de Schwitters de acumulador de quinquilharias. Ela contou a Feaver que, quando eles se mudaram para o último lugar onde viveriam em Ambleside, foi preciso uma carroça puxada por cavalo para transportar a pilha de lixo que Schwitters tinha acumulado. Ela escondia tudo do senhorio, colocando os objetos debaixo da cama.

Schwitters adorava o Lake District, mas a vida ali era dura. Ele e Wantee eram muito pobres --Henrichsen se recorda que comprar uma única maçã já era difícil para eles--, e alguns dos moradores locais os tratavam com desconfiança. Achavam estranho aquele sujeito sempre carregando uma mala (ela continha suas tintas, seus pincéis e suas chapas de madeira) e não entendiam o trabalho dele.

As duas colagens --Schwitters criou centenas nesse período-- que ele exibiu na Exposição de Artistas de Lakeland, em Grasmere, em 1947, não foram vendidas; as pessoas preferiam as paisagens turísticas que ele pintava e expunha para venda na entrada da Bridge House, em Ambleside. Não surpreende que ele tenha se divertido tanto com o sucesso que fez na exposição de pinturas de flores de Ambleside. "Enviei seis quadros. As rosas da sra. Vartis receberam o primeiro prêmio, e o Crisântemo do sr. Bickerstaff, o segundo. Ganhei dois prêmios. O único problema é que o valor dos prêmios é baixo, 30 xelins. Mas a honra! Agora as pessoas daqui sabem que eu consigo pintar flores."

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As coisas estavam prestes a ficar ainda mais difíceis. Em outubro de 1946, Schwitters caiu e quebrou a perna. Ele nunca se recuperaria por completo do acidente. Agora seu tempo se tornara duplamente precioso, e ele começou a procurar um novo local no qual erguer uma última obra-prima. Harry Pierce, um arquiteto e paisagista de talento, vivia na fazenda Cylinders, em Elterwater, onde estava plantando um jardim extraordinário numa encosta de morro, num local antes ocupado por uma fábrica de pólvora, e Schwitters, de quem o retrato dele tinha sido encomendado, ficou fascinado por seus métodos: "Ele deixa o mato crescer, mas o converte numa composição com o simples acréscimo de alguns toques pequenos. Exatamente como eu crio arte a partir de lixo." Ele perguntou a Harry se este teria disponível um paiol ou galpão no qual ele pudesse trabalhar.

Em junho de 1947 Schwitters finalmente recebeu uma boa notícia: o Museum of Modern Art de Nova York lhe tinha concedido um cargo pago, e este financiaria a escultura que ele criaria dentro do antigo paiol de feno de Harry Pierce. Schwitters pensava que algum dia seu trabalho seria visto como "um monumento de Lakeland". E assim ele começou a trabalhar no paiol, no outono daquele ano. "Ele trabalhava com energia febril", Pierce recordou mais tarde.

"Seu entusiasmo superava sua fraqueza física, até estar mal ser perceptível." Mas a areia de sua ampulheta escorria sem parar. Schwitters tinha acabado de passar três meses trabalhando sobre sua terceira e última Merzbau. Com o frio e a umidade, desenvolveu uma bronquite que se converteu em pneumonia. Ele morreu no ambulatório Kendal em 8 de janeiro de 1948, aos 60 anos. Uma carta informando-o que seu pedido de cidadania britânica tinha sido deferido chegou dois dias mais tarde.

É sinal dos altos e baixos da reputação de Schwitters ao longo dos anos o fato de que a instituição que dentro em pouco vai abrigar uma grande exposição de sua obra recusou a oportunidade de abrigar a parede do Paiol Merz quando o fragmento lhe foi oferecido, em 1962. "Sim, a Tate recusou a parede, alegando que seria impossível mudá-la de lugar", diz Fred Brookes. "Mas Kenneth Rowntree (o então professor de arte na Universidade Newcastle, sede da Hatton Gallery) simplesmente disse a Pierce: 'Ficaremos muitíssimo contentes, meu caro', sem fazer pergunta alguma."

A relação de Brookes, hoje estrategista cultural, com a Parede Merz é longa e extraordinária. Em 1965, quando era estudante segundanista de arte em Newcastle, o artista Richard Hamilton, um de seus professores, o convidou para participar da equipe que ia examinar a parede, hoje em processo acelerado de deterioração, antes de ela ser transferida para a Hatton (foi Hamilton quem "redescobriu" a parede, e foi ele o arquiteto principal da transferência, pelo menos inicialmente).

"Eu era bom com desenhos medidos, então tive que mapear a parede inteira, para o caso de pedaços caírem. No final, acho que passei mais tempo com ela que o próprio Schwitters." Ele se recorda da primeira vez em que a viu? "Com certeza, muito bem. Era um dia ensolarado, e ela estava simplesmente ali, pendurada no escuro. Foi emocionante."

Brookes também esteve lá durante o próprio traslado; a universidade tinha despachado o jovem estudante para cuidar da parede enquanto ela era manejada por técnicos contratados. Antes de ser movida, a parede de ardósia precisou ser reforçada com aço e concreto para poder ser colocada inteira numa van; no final, ela pesava 15 toneladas. "Os técnicos da Carlisle foram fantásticos", ele conta. "Trataram a parede com respeito tremendo. Mas então chegaram os homens da Pickfords --a empresa mandou uma equipe especializada em transportar transformadores elétricos em campos rurais--, e, para eles, era simplesmente um objeto grande, nada mais.

Em dado momento, eles a estavam erguendo com um guincho e ela não estava bem reta. Vi um sujeito pegar um martelo enorme para bater nela para posicioná-la corretamente, e simplesmente me joguei entre a parede e o martelo. No final, ela chegou a Newcastle numa condição tão boa --na verdade, tão ruim-- quanto estava ao sair do paiol."

Brookes acha que a Parede Merz perde muito com o traslado, e ele gostaria que a Hatton Gallery erguesse um novo paiol em volta dela, para que as pessoas pudessem vivenciá-la como seu criador pretendia. Ele tem razão quanto a isso? Não sei ao certo. Em Elterwater, Hunter e Larner me dão chá e sopa quente, e então eu retorno a Kendal, onde embarco num trem para Newcastle. A Parede não irá ao Tate, por razões óbvias, e eu não acho que possa escrever sobre o exílio de Schwitters na Inglaterra sem vê-la.

Chego, portanto, ao final de minha romaria. É verdade que o ambiente da galeria reduz a dramaticidade da obra. Onde deveria haver chão de terra, há um parquê; ao invés de sombras, iluminação com focos. Mesmo assim, o fato de poder vê-la com clareza permite que você entenda o que Schwitters realizou. O modo como ele deixou que os contornos da parede ditassem as reentrâncias e saliências que esculpiu sobre ela. Os contrastes sutis entre cores e texturas distintos.

A estranheza --e a emoção suscitada-- dos "objets trouvés" que se aninham nas partes côncavas: o bico de um regador de criança, um cortador de ardósia com três dentes, um pedaço de barbante marrom, um ovo de louça. O trabalho possui uma grandeza esdrúxula e primitiva: em parte pintura rupestre, em parte fantasia modernista.

O que me impressiona mais, contudo, é a sensação geral de esperança que transmite. É verdade que em seus cantos e recôncavos há uma sensação de morte, de locais bombardeados e espaços memoriais. Mas, quando você se afasta um pouco, a parede parece sem peso, leve, mais uma onda que uma parede. Como me faz ver Rob Airey, o curador da Hatton, a trajetória dela é para o alto e para a direita --em direção ao que teria sido uma janelinha, quando ela estava no paiol.

É surpreendente, quando pensamos na situação difícil em que estava o homem que a criou. Schwitters estava pobre e era ignorado; passava fome e frio, estava morrendo. No entanto, seu trabalho final, apesar de não passar de um fragmento, parece sempre estar se movendo naturalmente em direção à luz.

Tradução de CLARA ALLAIN.

 

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