Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
17/02/2013 - 08h06

Obra retrata fim do coronelismo no país

Publicidade

MAURICIO PULS
DE SÃO PAULO

Após tantos prêmios, não resta dúvida de que "O Som ao Redor" é o filme brasileiro mais significativo desde "Cidade de Deus" (2002). Nenhuma outra obra dos últimos anos produziu retrato tão abrangente da sociedade nacional, que de certo modo condensa a trajetória do país no período republicano.

O pano de fundo histórico aparece já na sequência de fotos de um antigo engenho de açúcar no Nordeste --que recordam as películas do cinema novo, com suas paisagens empobrecidas habitadas por personagens de Graciliano Ramos.

Essas imagens arquetípicas logo cedem lugar à crônica de uma rua da zona sul de Recife, em tudo igual aos bairros nobres das metrópoles do Sudeste. A maior virtude da obra consiste em captar a metamorfose daqueles tipos que povoavam os grotões em moradores de uma via asfaltada e arborizada, em permanente rixa com os vizinhos.

Por que tais filmes são tão raros no Brasil? Desde 2003, muitos críticos já apontaram a superioridade do cinema argentino em relação ao nosso, atribuindo o fato a deficiências dos diretores locais, supostamente presos a temáticas repetitivas e propensos a realizar obras esquemáticas e moralistas.

Explicações assim, porém, dissociam o sujeito do objeto, desconsiderando o fato de que os cineastas não estão diante do mundo que buscam compreender, mas dentro dele. Por que uma nação não consegue conhecer a si mesma?

A razão desse subdesenvolvimento artístico encontra-se no próprio "O Som ao Redor". O filme mostra como as mudanças no Brasil se processam vagarosamente, por meio de deslizamentos sutis na hierarquia social --como a transformação do velho senhor de engenho em um especulador de imóveis urbanos, e a conversão de camponeses em guardas noturnos.

FATALISMO

Como observou o filósofo Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), essa estagnação social difunde na intelectualidade uma visão de mundo fatalista, pois a história se apresenta como obra do destino. Pouquíssimos artistas chegam a entender os países que adotam essa política de conciliação com o atraso, porque o presente está sempre encoberto pelo passado. E, como as obras de arte só aparecem aí de forma esporádica, tais nações não conseguem criar uma tradição artística orgânica.

Em contraste, cineastas de países sacudidos por crises traumáticas têm diante de si uma matéria-prima muito diversa. Nesses momentos as estruturas do antigo regime são demolidas velozmente, e os alicerces do novo mundo são percebidos com nitidez. Não é por acaso que fortes impulsos de renovação do cinema surgiram após guerras mundiais (Alemanha, Itália, Japão), revoluções (Rússia, Irã) ou fiascos coloniais (França). Sem o colapso de 2001, dificilmente o cinema argentino seria o mesmo.

No Brasil, ao contrário, as mudanças não se processaram com rapidez nem com clareza. A partir do século 19, os escravos foram substituídos por assalariados que, embora formalmente livres, estavam submetidos ao poder pessoal do proprietário e constituíam sua principal base eleitoral. Mas não a única. O resto da população rural também dependia dos coronéis para ter acesso a serviços públicos.

Todo esse imenso subproletariado era conservador, pois sua privação material o predispunha a trocar seu voto por pequenos favores. Ao analisar o filme "Os Fuzis", de Ruy Guerra (1964), o crítico Roberto Schwarz já havia percebido esse fenômeno: "A massa dos miseráveis fermenta, mas não explode".

Esse vínculo secular só começou a se desfazer após a eleição de Lula em 2002, como mostrou André Singer em "Os Sentidos do Lulismo" (2012). As políticas de redução da pobreza possibilitaram a ruptura dos laços políticos entre os partidos conservadores e a população excluída. O grande mérito de "O Som ao Redor" foi tornar visível esse processo de decomposição. Talvez agora o caminho esteja livre para os novos cineastas.

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página