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03/04/2011 - 08h10

Leia trecho do primeiro capítulo do livro "O Valor de Nada", de Raj Patel

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DE SÃO PAULO

A seguir, o primeiro capítulo do livro do economista inglês Raj Patel, lançado no Brasil pela ed. Zahar, com tradução de Vania Cury:

"I. A falha

Agora que tenho a visão quadruplicada,
E uma visão quatro vezes maior me foi dada;
É quadruplicada em meu prazer supremo,
E triplicada na suave noite de Beulah,
E duplicada Sempre. Que Deus nos livre
Da visão Singular, e do sono de Newton!
WILLIAM BLAKE, "Poems from Letters"

Se a guerra é o meio empregado por Deus para ensinar geografia aos norte-americanos, a recessão é a Sua maneira de ensinar um pouquinho de economia a todo mundo.

A tremenda desordem do setor financeiro mostrou que as mentes matemáticas mais brilhantes do planeta, financiadas por alguns dos bolsos mais cheios, haviam construído não uma elegante engrenagem de prosperidade constante, mas um mecanismo precário de trocas, barganhas e apostas que inevitavelmente ruiu. A recessão não foi decorrente da falta de conhecimentos econômicos, mas, sim, do excesso de um tipo particular de conhecimento, uma exacerbação do espírito do capitalismo. A euforia dos mercados livres nos impediu de enxergar outras formas de ver o mundo. Como Oscar Wilde escreveu há mais de um século: "Hoje em dia, as pessoas sabem o preço de tudo e o valor de nada." Os preços se mostraram parâmetros instáveis: o colapso financeiro de 2008 aconteceu no mesmo ano das crises de alimento e petróleo, e ainda assim continuamos incapazes de avaliar nosso mundo por uma perspectiva diferente do prisma enganoso dos mercados.

Uma coisa é clara: as formas de pensar que nos colocaram nessa confusão dificilmente vão nos tirar dela. Pode servir de ligeiro consolo saber que até mesmo alguns dos estudiosos mais respeitados foram forçados a quebrar a cabeça em relação às suas suposições equivocadas. Provavelmente, um dos mais dolorosos reconhecimentos da própria ignorância foi demonstrado no dia 23 de outubro de 2008, quando, em uma sala lotada, diante do Comitê de Supervisão e Reforma Governamental do Congresso, Alan Greenspan descreveu o fracasso de sua visão de mundo.

Greenspan era um dos mais reconhecidos legisladores da economia mundial durante os dezenove anos em que exerceu o cargo de presidente do Federal Reserve (também conhecido como Fed). Membro de carteirinha da brigada do livre-mercado, ele seguia os passos de Ayn Rand, que, embora pouco conhecida fora dos Estados Unidos, continuou sendo influente muito tempo depois de sua morte, em 1982. O livro que ela escreveu em 1957, Quem é John Galt? (Atlas Shrugged, no original), no qual magnatas executivos heroicos enfrentam o flagelo do funcionalismo público e do sindicalismo, voltou a figurar na lista dos mais vendidos. Ao encarar o altruísmo como "canibalismo moral", Rand foi a chefe de torcida de uma escola de pensamento radicalmente libertária em relação ao livre-mercado, que ela mesma chamou de "Objetivismo". Atraído para o círculo da escritora por essa inebriante filosofia, Greenspan recebeu o apelido de "Agente Funerário" em função de seu comportamento "divertido" e de seu modo de vestir. Quando Greenspan escolheu fazer carreira no setor público, foi como se um hippie tivesse se alistado nas Forças Armadas, um lapso que seus antigos amigos jamais perdoaram. Apesar disso, Greenspan continuou bastante fiel à filosofia de Rand, acreditando que o egoísmo levaria ao melhor mundo possível, e que qualquer tipo de restrição resultaria em desastre.

No final de 2008, Greenspan foi intimado pelo Congresso dos Estados Unidos a testemunhar sobre a crise financeira. Sua gestão no Fed tinha sido longa e elogiada, e o Congresso desejava saber o que acontecera de errado. Quando começou a ler seu testemunho, Greenspan parecia exausto, a pele do rosto flácida e caída, como se o vigor que antes o mantivera firme tivesse desaparecido por completo. Mas ele se saiu bem. Na primeira parte do depoimento, criticou as informações com as quais trabalhara. Se os dados estivessem certos, os modelos econômicos teriam funcionado e as previsões seriam melhores. Em suas palavras,

um Prêmio Nobel foi concedido pela descoberta do modelo de preços que sustenta grande parte do avanço dos mercados de derivativos. Esse paradigma moderno de administração de risco se manteve estável durante décadas. No entanto, todo o edifício intelectual entrou em colapso no verão do ano passado, porque, em geral, os dados incluídos nos modelos de administração de risco cobriam apenas as duas últimas décadas, que foram um período de euforia. Caso os modelos tivessem sido elaborados de modo mais apropriado para períodos históricos de crise, as exigências de capital teriam sido muito maiores e o mundo financeiro estaria muito melhor hoje, em minha opinião.

Esse é um argumento do tipo "despir um santo para vestir outro". O modelo funcionava bem; as suposições sobre risco e os dados, baseadas apenas nos bons tempos do passado, é que eram enganosas, e assim, de modo correspondente, o resultado foi equivocado. Henry Waxman, rival de Greenspan no comitê, forçou-o, em um notável diálogo, a uma conclusão mais aprofundada:

WAXMAN: A questão que lhe coloco é que o senhor tinha uma ideologia, o senhor tinha uma crença a respeito dos mercados livres, competitivos --e isto é uma afirmação sua: "Eu tenho uma ideologia. Minha opinião é que mercados livres, competitivos, são de longe o modo mais incomparável de organizar a economia. Tentamos as regulações, mas nenhuma funcionou adequadamente." Estas foram suas palavras. O senhor tinha autoridade para impedir empréstimos irresponsáveis que levaram à crise das hipotecas subprime. Várias pessoas aconselharam o senhor a fazê-lo. E agora toda a nossa economia está pagando o preço. O senhor acredita que a sua ideologia o levou a tomar decisões que gostaria de não ter tomado?

GREENSPAN: Bem, lembre-se porém do que significa uma ideologia. É uma construção conceitual com [sic] a forma pela qual as pessoas lidam com a realidade. Todo mundo tem uma. É fundamental. Para existir, é preciso uma ideologia. A questão é se ela é correta ou não. O que estou lhe dizendo é que, sim, encontrei a falha, não sei quão significativa ou permanente ela é, mas fiquei muito angustiado com esse fato.

WAXMAN: O senhor encontrou uma falha?

GREENSPAN: Encontrei uma falha no modelo, que identifiquei como a estrutura funcional crítica que define o funcionamento do mundo, por assim dizer.

WAXMAN: Em outras palavras, o senhor percebeu que a sua visão de mundo, a sua ideologia, não estava certa, não funcionava.

GREENSPAN: Exatamente. Essa foi a razão exata pela qual fiquei chocado, pois convivi quarenta anos ou mais com evidências consideráveis de que ela funcionava excepcionalmente bem.

Na realidade, a falha não era um mero problema de dados pouco confiáveis. Nem era algo tão vasto quanto um Cisne Negro, um problema que escritores tais quais Nassim Taleb descrevem como um acontecimento altamente improvável e imprevisível que, quando ocorre, acarreta consequências catastróficas. A falha de Greenspan era ainda mais fundamental. Ela deformou sua visão acerca da organização do mundo e da sociologia do mercado. E Greenspan não está sozinho. Larry Summers, conselheiro econômico sênior do presidente, também teve de prestar contas de um erro semelhante --sua visão de que o mercado era inerentemente autoestabilizador "recebeu um golpe fatal". Hank Paulson, secretário do Tesouro de Bush, encolheu os ombros com resignação similar. Até mesmo Jim Cramer, do programa Mad Money da CNBC, admite a derrota: "O único sujeito que deu a isso o nome certo foi Karl Marx." Um após o outro, todos os sacerdotes do livre-mercado estão, para usar a linguagem do mercado, sofrendo uma correção."

 

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