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01/05/2011 - 08h10

Leia trecho do livro de memórias de Saul Steinberg

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DE SÃO PAULO

A seguir, trecho de "Reflexos e Sombras", livro de memórias de Saul Steinberg, lançado no Brasil pelo Instituto Moreira Salles, com tradução de Samuel Titan Jr.

*

"É difícil dizer a verdade sobre qualquer coisa ou representar a si mesmo por meio de uma outra coisa. O que procuro fazer é dizer com a pintura algo além daquilo que o olho vê. Minhas pinturas, mais que pinturas independentes, são partes de uma bancada, objetos sobre uma bancada de desenho, uma bancada de pintor. Os lápis e as outras coisas que faço servem para dizer que essa pintura não é minha, mas de outrem, talvez "daquele pintor", mas não propriamente minha. Sou mais regente de orquestra, digamos, que pintor às voltas com a pintura. Meu trabalho diz certas coisas sobre certas outras coisas; e, quando é pintura, diz certas coisas sobre a pintura, e não se limita a dizer que isto é o que é. Se introduzo um sinete numa pintura, eu o faço para mostrar que essa cor não é uma cor de verdade, é o símbolo a coisa pintada, assim como o sinete é o símbolo do homem. Não sei bem se isso é um sinal de modéstia ou o oposto.

Divulgação
Capa do livro de Saul Steinberg
Capa do livro de Saul Steinberg

Minha evolução começou de baixo, dos cartuns. Aprendi trabalhando e consegui escapar de alguns becos sem saída, vulgaridades do desenho humorístico e banalidades da arte comercial--, conservando sempre um pouco desse elemento de mediocridade, quase de vulgaridade, que não quero abandonar, pois o julgo necessário, à maneira de alguém que, mudando de classe social, não quer se separar da mulher e dos velhos amigos.

Um desenho de observação revela muito de mim. Nos outros desenhos --nos desenhos feitos com a fantasia--, faço apenas o que quero e mostro a mim e ao mundo como bem entender, ao passo que, no desenho de observação, o protagonista já não sou eu, que me torno uma espécie de servo, de personagem secundário. Sou arrastado de tal maneira pela realidade que tenho diante de mim que esqueço de mim mesmo e trabalho como em transe, buscando singularizar a realidade, fazendo o desenho sem me dar conta de que o estou fazendo. E assim tenho medo de que o desenho revele certas partes de mim mesmo, certas zonas de vulgaridade em que não digo a verdade, lanço mão do que já sei, dos lugares-comuns, e vejo em mim mesmo, isto é, no desenho que estou fazendo, alguns dos meus defeitos constantes: terminar sem terminar, cansar e renunciar a insistir num ponto que seria essencial; por timidez ou por preguiça, deixo de insistir, e assim as coisas não terminam como deveriam, a promessa é mais abundante que o resultado. Há por vezes alguma coisa de sedutor no que faço, mas que seria bom de verdade se eu continuasse seriamente até o fim, se mantivesse a promessa.

Tendo terminado um desenho de observação, não consigo deixar de retomá-lo depois, para controlar e refazer tudo com a cabeça fria. Só quando já passou muito tempo consigo rever esses desenhos sem o olho crítico de quem acabou de desenhar, mas apenas com a benevolência que um pai dedica ao filho. Mas, na hora, sempre suspeito do que fiz sem minha própria bênção. Sou o contrário de um expressionista. E, de resto, também de um impressionista.

Em 1950, fiz desenhos mais ou menos a partir da observação de paisagens americanas, ruas americanas, coisas que já não existem mais. Na época, não havia ninguém que se interessasse por essas coisas; os pintores americanos procuravam lugares, ângulos que se parecessem com a "verdadeira pintura", mesmo numa main street buscavam uma nesga de pintura inglesa ou alguma coisa de Rembrandt ou de Vermeer. Havia vários pintores em Nova York --Reginald Marsh, por exemplo-- que
buscavam na rua 14 alguma coisa à maneira de Hogarth ou de Rubens. Nos Estados Unidos, a arte floresceu sobretudo graças à pouca atenção que mereceu. Nos anos 1940, quando começou o grande momento da pintura americana, uma coisa que certamente influenciou a arte foi a pobreza, que forçou os artistas a cuidar da própria casa. Alugavam um cold water flat, um apartamento para pobres, sem água quente, e o transformavam em estúdio; e, para poder morar nesses lugares, tinham que limpar
e pintar as paredes, os batentes, o chão. Pintores de qualidade tiveram que trabalhar como pintores de parede, e isso os levou a trabalhar em grande escala, a usar cores industriais como o dourado e o prateado dos radiadores, materiais novos. O estúdio não era mais um lugar para capturar a luz da face norte. Nas cidades, em especial, trabalhavam à noite, e, mesmo de dia, usavam a luz forte das lâmpadas de neon."

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"Sketchbook Table", de Saul Steinberg (1974)
"Sketchbook Table", de Saul Steinberg (1974)
 

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