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A imaginação de Marcílio França Castro
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DE SÃO PAULO
O escritor publica na Ilustríssima de 17 de julho o conto "Da Dívida que Temos para com os Cães", que estará no livro "Breve Cartografia de Lugares sem Nenhum Interesse".
Leia abaixo dois outros contos que aparecerão no volume.
O futuro dos fantasmas
Uma das consequências não imaginadas pelos construtores quando impuseram ao mundo as falsas fachadas e as paredes de isopor foi a destruição do hábitat natural dos fantasmas. Como algumas pessoas já começam a perceber, mas sem remorso ou nostalgia (porque o processo parece mesmo irreversível), a porosidade dos edifícios é letal para a espécie. Sem a firmeza do barro ou do cimento, sem a sobriedade irresistível de um porão ou de uma despensa, não podem exercitar sua arte ancestral de transpor obstáculos, e assim estão condenados a definhar. Por outro lado, a mania recente de construir pelo avesso, de deixar tubos e canos à mostra, tem levado a uma exposição constrangedora da vida íntima dessas criaturas. Assustados, agora se amontoam entre os batentes e portas de madeira que vão sobrevivendo às demolições. Talvez daqui a cem anos ninguém se lembre mais do leve medo, do erotismo, do vento provocativo e duvidoso que soprava com a mobilidade desses antigos hóspedes do planeta, hoje tão vulneráveis.
Hic sunt dracones
É sabido que os cartógrafos medievais, ao mapear um território ou mar desconhecidos, costumavam orná-los com figuras de sereias, grifos e dragões. A inscrição hic sunt dracones, que adverte sobre as fronteiras ignotas e selvagens, aparece em desenhos do velho mundo e sintetiza o temor inventivo dos homens dessa época.
Relatos datados do século XVI dão conta de que Gerhard Kremer, o calígrafo flamengo que, sob a alcunha de Gerardus Mercator, se tornaria o pai da cartografia moderna, passou boa parte de sua adolescência atormentado por pesadelos com tais monstros. Teria sido esse, inclusive, à margem de outras hipóteses mais razoáveis, o verdadeiro motivo que o levou a conceber a famosa projeção apelidada com seu nome, mediante a qual se bania o apelo aos símbolos e à fantasia próprios dos mapas de
inspiração cristã.
Em um manuscrito descoberto em Dresden por volta de 1935, e quase não comentado pelos especialistas, Ortelius, cartógrafo contemporâneo de Mercator e seu adversário cordial, autor do primeiro atlas moderno, o Theatrum Orbis Terrarum, registra um aspecto obscuro da vida do colega, ignorado até mesmo pelo primeiro e mais detalhista de seus biógrafos, Walter Ghim, vizinho de Mercator por muitos anos. Afirma Ortelius que, já no final da vida, quando sua técnica se espalhara pelas escolas de todo o mundo e seus pares o reconheciam como o maior dos mestres, Mercator passou a queixar-se de um terrível pesadelo, ainda mais perturbador do que aquele que o dominara quando jovem. Em seus sonhos, o velho cartógrafo, levando consigo um esquadro e uma prancheta, atravessava um absurdo deserto, uma vastidão sem cor onde não vingaria nenhuma forma de vida, e em cujo limite principiava outro deserto.
Ao final do manuscrito, que contém uma burocrática nota sobre como Mercator o ajudara a confeccionar seu atlas, Ortelius lamenta o sofrimento do amigo e, referindo-se ao pesadelo que o afligia às portas da morte, indaga sem ironia: "Seria esta uma vingança das fabulosas criaturas por terem sido excluídas da imaginação dos homens?"
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