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31/10/2011 - 18h31

A batalha biográfica: Jobs vs Assange

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ANNE PERKINS
DO "GUARDIAN"

De tempos em tempos se anuncia que a biografia morreu. A escritora Hilary Spurling disse isso cinco anos atrás, quando recebeu o Prêmio Whitbread para o livro do ano por sua biografia de Matisse, em dois volumes. Mas talvez ela tenha se referido às biografias do tipo literário longo. Porque, no cotidiano, a biografia é tudo.

Não apenas é o material básico da TV-realidade, das revistas de fofocas e da atração global exercida pelo voraz site do "Daily Mail": é também o que confere cor aos discursos dos políticos, o chamariz usado na ciência popular e o que subjaz à invenção do artista como arte. Mesmo entre capas duras, a biografia vende bem. Mesmo uma biografia de um executivo-chefe. Mas estamos falando de Steve Jobs.

Houve uma época em que o pessoal realmente era pessoal. Os atores supostamente tinham vidas particulares cheias de detalhes saborosos, mas ninguém precisava tomar conhecimento delas. A juventude irrepreensivelmente conservadora de Clement Atlee não tinha relevância para a agenda radical de seu governo, e apenas um círculo pequeno soube, na época, que durante 20 anos lady Dorothy, esposa de Harold McMillan, foi apaixonada por e amante de um colega conservador do primeiro-ministro. Hoje parece que todo o mundo vive com as cortinas abertas --mas, quanto mais as pessoas revelam, mais as pessoas querem saber.

Letícia Moreira/Folhapress
Exemplares de "Steve Jobs", biografia do fundador da Apple, expostos na Livraria da Vila, na capital paulista
Exemplares de "Steve Jobs", biografia do fundador da Apple, expostos na Livraria da Vila, na capital paulista

Steve Jobs procurou Walter Isaacson, seu biógrafo, graças à biografia que Isaacson escrevera de Benjamin Franklin. Cooperou com ele, abrindo-se pela primeira vez sobre sua família, falando sobre seu comportamento chocante no trabalho, compartilhando seus momentos catastróficos e chegando a selecionar fotos nas semanas antes de sua morte.

Logo, em um mundo sem segredos, tinha que haver alguma outra razão para levar as pessoas a gastar o preço de uma garrafa de bom vinho com a história de uma vida, e mais ainda quando é uma história cujo sujeito colaborou em contá-la. Uma biografia autorizada corre o risco de sofrer o efeito mortal da inviolabilidade, a percepção de que a mão do autor foi limitada por um acordo selado entre o sujeito e o escritor.

A única coisa interessante que Roy Jenkins me contou quando o entrevistei para perguntar sobre sua antiga colega de gabinete Barbara Castle, sobre a qual eu estava escrevendo uma biografia autorizada e que ele tinha em baixa conta, foi que eu não deveria publicar o livro antes de Castle morrer. "É impossível escrever uma boa biografia quando o tema dela ainda está vivo", ele me admoestou. Declarou solenemente que ele próprio tinha feito de sua morte uma precondição da publicação de sua biografia.

A morte de Steve Jobs foi a perfeita plataforma de lançamento de sua biografia. Mas também lança sombra sobre ela. No "New York Times", Joe Nocera diz que a intimidade do contador de histórias autorizado prejudica a biografia de Jobs. Como, ele pergunta, você pode acompanhar a morte de um homem e conservar um senso de distância? Sam Leith, no "Guardian", sugere que o que fica faltando não é tanto contar a verdade quanto a capacidade de ser seletivo. Mas seriam necessárias mais que algumas críticas para prejudicar as vendas de um livro sobre o "i" do século 21.

JULIAN ASSANGE

Assim, Steve Jobs, apesar de ter sido apenas um CEO de enorme talento, foi um vencedor certeiro. Mais difícil de explicar é o porquê de a biografia autorizada mas desautorizada de Julian Assange, herói dos subversivos do mundo, ter sido um fracasso tão grande de vendas, tendo aparentemente sido superada nesse quesito por uma coletânea de contos de Mills e Boon.

Talvez a editora, Canongate, tenha errado na avaliação que fez de seu mercado. As pessoas interessadas em saber o que faz Assange vibrar não comprariam um livro que pode ser descrito como uma traição intrínseca, publicado quando sua preparação estava apenas na metade.

Mas houve mais. Para começar, Assange não é um herói morto recentemente, e sim um homem muito vivo, foragido da Justiça por acusações de estupro, alguém cuja falta de habilidades interpessoais ainda não foi modificada por qualquer sucesso comercial arrasador. Seu grande charme não era ser um sujeito intratável, mas irresistível. Era ser intratável, e só.

Na realidade, se analisarmos biografias que vendem bem, especialmente as que vendem por meses e meses a fio, é difícil detectar qualquer padrão óbvio que se repita.

Membros da realeza fazem sucesso sempre, especialmente nos EUA, e, dentro dessa categoria ampla, Elizabeth 1ª é uma das maiores apostas. Hitler ou Churchill em um título sempre garantem atenção no mercado anglófono. Mas ninguém --nem mesmo seu autor, provavelmente-- teria previsto o extraordinário sucesso da saga da família de Edmund de Waal, "The Hare with Amber Eyes", que se aproxima de um ano entre os 20 livros mais vendidos pela Amazon.

E, encaremos a realidade, o enorme sucesso de "A Jornada", livro de memórias de Tony Blair, é uma aula pontual sobre a celebridade como produto vendável. Na dúvida, leia o que Jonathan Margolis diz sobre sua biografia de Lenny Henry para saber mais sobre uma descoberta dolorosa da importância de vendas de biografias como expressão de sucesso pessoal.

Divulgar os rankings de Jobs versus Assange nas listas de livros mais vendidos revela muito sobre as atitudes públicas em relação ao sucesso e à subversão, ao culto da personalidade e a importância de ser desejável (sim, Steve Jobs inegavelmente entendia isso). Mas os resultados revelam muito mais sobre a gloriosa elasticidade da biografia como gênero literário.

Tradução de Clara Allain.

 

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