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08/06/2010 - 19h39

Códigos e símbolos cercam o universo das touradas

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MARIANNE PIEMONTE
DE MADRI

Para o artista espanhol Pablo Picasso (1881-1973), o domingo ideal tinha missa pela manhã, tourada à tarde e bordel à noite. Ele dizia que podiam lhe faltar a missa e o bordel, mas as touradas, nunca. Para entender o fascínio dos espanhóis pelas corridas de touro é preciso entrar numa "plaza de Toros". É preciso ouvir "olé", ver as cores dos "trajes de luz", com seus bordados em ouro, ver o pano vermelho balançar, um animal de 600 quilos correr como uma fera e assistir ao desenhar do rastro de seu sangue na areia da arena, quando carregado morto por burricos enfeitados com flores coloridas.

José Ramón Lozano
Na foto acima, José Maria Manzanares toureando na plaza de Sevilha, na Espanha, neste ano
Na foto acima, José Maria Manzanares toureando na plaza da cidade de Sevilha, na Espanha, neste ano

Para entender esse fascinante, amado e odiado mundo do touros fui a Madri, na Espanha, no início de maio. Estive na plaza Las Ventas, construída em 1929, a mais importante do mundo. Em maio, mês em que se celebra o dia do padroeiro da cidade, é realizada a Feira de Santo Isidro, festival com as mais importantes touradas do circuito mundial. Toureiros que triunfam ali são ídolos, adorados como heróis e pagos como jogadores do futebol europeu. Durante 35 dias, seis touros e três toureiros se enfrentam todas as noites. Cada touro terá um ato de 20 minutos. Ao final do evento, morrerão 210 touros, mas poucos serão os toureiros que sairão da "plaza" com as orelhas do animal nas mãos, honra concedida aos que triunfam. E triunfar não é apenas matar o touro. É a combinação do balé perfeito e da morte precisa.

No dia 13 de maio, sentei-me no setor 10, poucos metros abaixo do camarote real, num dos 20 mil lugares que lotam diariamente durante os festejos. Os ingressos ali variam de R$ 9 a R$ 900. Às 19h, uma corneta anuncia a entrada de dois cavaleiros. São eles que guiam a apresentação.

Entram na arena três toureiros, seguidos por nove "banderilleros" (auxiliares que portam lanças de 75 cm, com arpões nas pontas, para espetar o touro). Surgem então dois picadores (homens a cavalo que usam lanças de dois metros). Por fim, cerca de seis auxiliares dos "banderilleros" e picadores. Todos reverenciam o camarote real (que, na ausência do rei, é sempre frequentado por familiares ou convidados). Nesse momento, um balé de "capotes" (como são chamados os panos do toureador, de um lado fúcsia e do outro amarelo vivo) começam a dançar nas mãos do toureiro que foi sorteado para iniciar a corrida. Seus dois assistentes fazem o mesmo. O "matador", como chamam o toureiro, tem seu traje de luz (nome da veste) bordado em fios de ouro; os assistentes usam prateado.

Outro anúncio do "shofar", uma espécie de corneta de cano longo usada para anunciar os reis, e o touro entra na "plaza". Em seu dorso está fincada uma fita colorida que identifica fazenda ou criador a quem ele pertence.

Matador e assistentes balançam seus capotes, mas quando o touro investe, eles correm para trás de uma das proteções de madeira que ficam nos quatro pontos da arena. Essa etapa dura, no máximo, cinco minutos. Mais um som de "shofar" e o picador e sua lança entram a galope para ferir o touro. Picasso dizia que, se não fosse pintor, seria picador. Por 10 ou 20 segundos, ele perfura o dorso do animal --o objetivo, de acordo com o código taurino, é ferir o animal para que, debilitado, ele possa ser toureado. Em seguida, os "banderilleros", com suas lanças enfeitadas com fitas coloridas, entram e espetam o touro, que chacoalha com a dor. Nesse momento, ele está pronto para ser toureado. "Antes, ele tem tanta energia que seria impossível", explica o jornalista da imprensa especializada mexicana Mariano Aliaga. Ele está sentado ao meu lado e narra os detalhes da festa que frequenta desde menino. "É preciso deixar o touro em condições de 'igualdade' para o enfrentamento com o toureiro", diz. O sangue jorra devido à estocada.

Agora sim, quando o touro não corre mais e ofega (o que se percebe ao olhar para a barriga, que infla e esvazia rapidamente), o matador entra em cena. Troca-se o capote pela muleta, o famoso pano vermelho. Apenas o matador está no centro da "plaza", com sua espada envolta nesse pano. Se o touro for bom, esse é o momento do "olé" e da demonstração dos cerca de 700 movimentos que compõem o balé do toureiro.

Na noite de 13 de maio, Enjarado, um touro negro de 551 quilos, não estava muito apto ao combate. O toureiro decide terminar a "faena", os cinco minutos em que se toureia, pedindo autorização ao presidente da "plaza" para matar o animal. Nesse instante, por mais que eu esconda o rosto no lenço, o silêncio do público permite ouvir o som das patas trôpegas do animal. O toureiro movimenta o pano vermelho bem abaixo do quadril para que o touro abaixe a cabeça, permitindo o golpe final, no pescoço do animal. Se o fizer bem, o touro cai em segundos. Caso contrário, o algoz terá de usar outra espada para o golpe de misericórdia, quando se enfia a espada no cérebro do animal.

Enjarado caiu. Caiu sem ajoelhar e, com as quatro patas rijas para o alto, estrebuchou. Três burricos enfeitados entraram para recolhê-lo. À medida que o rastro de seu sangue pintava a areia da plaza, o volume das vaias subia. "[O touro] está sendo vaiado porque não mostrou bravura", explica-me o jornalista mexicano que me acompanha.

José Ramón Lozano
José María Manzanares e toureiros se dirigem à plaza Cantalejo, na província de Segovia, na Espanha
José María Manzanares e toureiros se dirigem à plaza Cantalejo, na província de Segovia, Espanha

Um toureiro de paz

São muitos os códigos e símbolos que cercam o universo das touradas. Um deles diz que o toureiro é a representação feminina na luta com a brutalidade da fera, ou o elemento masculino representado pelo touro. Há quem diga que a praça é o mundo; o touro, os males; e o toureiro, os humanos brigando para triunfar. Seja qual for a metáfora, o Sol desse espetáculo é o toureiro.

Estou diante de um dos mais importantes da atualidade, José María Manzanares, 28. Filho e neto de toureiros, ele é considerado pelo público e pela imprensa especializada um "lidiador artístico", um bravo com arte.

Manzanares nasceu em Alicante, na região espanhola de Valência. Tem os olhos pequenos e a pele bronzeada. É delgado, como rege a cartilha do bom toureiro, mas tem o maxilar marcado, típico do "macho hispânico". Com e sem camisa, já ilustrou edições internacionais das revistas "Vogue" e "Vanity Fair". Para manter a forma de matador, faz séries diárias de alongamentos, exercícios de força e corre 45 minutos todas as manhãs na praia na companhia de seus dois cães da raça braco alemã, Mio e Mia. "Se não fosse toureiro, seria veterinário", diz.

Desde menino, viveu o mundo dos touros. Como Picasso, estava sentado no colo do pai, assistindo ao avô tourear e aprendendo o que significava cada detalhe da tourada. Aos 19 anos, deixou a faculdade de veterinária, apesar dos "pedidos desesperados" da mãe, para seguir a tradição da família.

Manzanares conta que costuma olhar nos olhos dos touros quando entram na praça. "Como os cachorros, eles sentem quando você está nervoso. Também é o olhar deles que me transmitem nobreza ou raiva. Sinto pena de matar touros que me passam bondade", diz.

A preparação para entrar na arena começa quando, diante do espelho, veste seu traje de luz, sempre acompanhado de um assistente. Nesse momento, fica em silêncio. Reza, não permite flores no quarto e só usa azul e vermelho. "Minha relação com o touro é tão intensa que, muitas vezes, não ouço o público."

Para ajudar a perpetuar a tradição, existem hoje escolas de toureiros. São 43 espalhadas pela Espanha, 22 delas na região da Andaluzia, onde as touradas são reverenciadas ainda com mais paixão.

A Tauromaquia

As primeiras corridas de touros têm origem em Creta, em 2000 a.C.. No Império Romano, toureava-se a cavalo, e na Espanha, acredita-se que tenham chegado com as invasões mouras.

Pouco ou quase nada mudou nas touradas modernas desde que o toureiro José Delgado Guerra, conhecido como Pepe-Hillo, escreveu em 1796 um dos primeiros tratados da tauromaquia. Nele, pela primeira vez, determina-se regras, funções e nomenclaturas para as corridas de touros.

Antonio López Fuentes é o alfaiate madrilenho mais importante do mundo dos touros. Todos os toureiros de sucesso fazem trajes com ele. Para o alfaite, as touradas não são espetáculos. "São sentimento, coração." Em seu ateliê em Madri, mulheres bordam as vestes que pesam cerca de cinco quilos e custam no mínimo R$ 9.000. Um traje de luz leva de 30 a 35 dias para ficar pronto, e um bom toureiro faz, em média, oito trajes por ano. No seu provador, junto com seu alfaiate, o herói desnudo fala de seus medos e aflições. Mas é também ali, diante do espelho, enquanto escolhe modelos de bordados e cores, que se alimenta de vaidade e confiança para as corridas. Como uma noiva à espera do grande dia. "Ficamos muito íntimos", diz o alfaiate.

Tamanha proximidade o faz sofrer como se perdesse um parente a cada acidente --que não são poucos. José Tomás, 35, considerado o número um entre os toureiros da atualidade, foi atingido por uma chifrada na plaza de Toros Monumental de Aguascalientes, no México, em 24 de abril. Tomás derramou num traje feito por Fuentes cinco litros de sangue, da média de sete que um homem tem no corpo. Na Espanha, houve comoção, no "New York Times" notícia.

Durante meus dias em Madri, o rei Juan Carlos esteve internado com suspeita de câncer. Pouco se falou. O assunto nas ruas era a rápida recuperação de José Tomás.

 

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