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20/08/2010 - 19h08

Caetano e as bacantes e a cara do senador

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FABRÍCIO CORSALETTI
COLUNISTA DA REVISTA sãopaulo

Eu tinha 17 anos e era a primeira vez que vinha pra São Paulo. Eu e o Caio, quase dois anos mais novo do que eu, no apartamento do Conrado, irmão dele. Meus primos. Amigos. Meus irmãos. Sem os pais por perto, na imensa cidade de São Paulo, onde reinava o anonimato e tudo era permitido. Eu estava achando o máximo. O Caio também. Comprávamos garrafas de Velho Barreiro e muitos maços de cigarro no mercado da esquina (na capa de um jornal importante, Caetano Veloso, nu, era devorado pelas bacantes do Teatro Oficina) e enchíamos a cara ouvindo Os Mutantes. Eu tentava fechar um poema que começava com o verso "A mulher que me ilumina", embora nenhuma mulher estivesse disposta a me iluminar ou mesmo a fazer coisas mais modestas e agradáveis comigo. O Caio arranhava o violão. De noite o Conrado chegava do trabalho e nos levava pra festas da faculdade.

Numa dessas bebedeiras vespertinas, admirando do sexto andar a rua tornada maquete lá embaixo, provavelmente nos sentindo muito protegidos (eu pelo menos nunca tinha me hospedado num prédio antes), o Caio e eu começamos a atirar papel higiênico molhado pela janela. Nas pessoas, na rua, nos carros. Lembro de um cachorro castanho com a cabeça subitamente branco-neve; de um cara forte, careca, olhando pra cima alucinado, procurando os responsáveis por aquela imperdoável lambada nas suas costas; de um Fusca vermelho, parado junto ao meio-fio, que ficou malhado como uma joaninha albina; da calçada cinza do edifício em frente abarrotada de borrões 
alabastrinos (gostou dessa, Reinaldo Moraes?). A essa altura já tínhamos trazido um balde cheio de água pra perto da janela e sete dos oito rolos de papel que havia na casa. Quando o papel e a pinga acabaram, dormimos cada um numa poltrona da sala.

- Vocês são dois idiotas. Moleques. Caipiras. Não acredito que vocês fizeram isso! - Conrado nos acordando.
Tentei abrir os olhos, mas estava difícil. A pior ressaca de 1996. Vergonha, arrependimento. E medo de ser preso.
O Conrado continuou:
- Vocês têm sorte de o Gilmar, o porteiro, ser meu chapa. Ele me chamou num canto e contou o que aconteceu. Disse pra eu dar um toque em vocês. A vizinhança tá puta da vida, mas não sabe quem foi. O Gilmar sacou que foram vocês, tocou o interfone e ninguém atendeu. Ainda por cima o som devia estar bem alto, né, seus merdas?!
Teve início um bate-boca entre os irmãos. Fui até o banheiro. Realmente inteligente não ter dado cabo dos oito rolos de papel.
Naquela noite o Conrado saiu sozinho.

No dia seguinte fui ao mercado buscar cigarro e Coca. Na banca de jornal, em vez do pau do Caetano, a cara flácida de um senador envolvido num esquema de corrupção. Fiquei confuso. Era como se a foto do Caetano jamais tivesse existido ou fosse parte de um mundo desaparecido pra sempre. Pensei em Woodstock. Pensei num poema de Baudelaire. O que era viver em São Paulo, afinal? No fim do ano eu prestaria vestibular pra alguma universidade paulistana e, se passasse, teria tempo pra descobrir.

 

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