Exército fica à frente de ação na Amazônia para dar recado sobre soberania

Força tem décadas de ideologia sobre a região, que alimenta paranoia de ameaça externa

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São Paulo

O comportamento agressivo de Jair Bolsonaro (PSL) ao lidar com a escalada de notícias acerca do desmate e de queimadas na Amazônia gerou um princípio de crise no governo nesta quinta (22). Caberá ao Exército, que se considera guardião da região, dar a principal resposta à opinião pública na crise.

Foto do dia 17 mostra incêndio florestal em curso na Amazônia, perto de Humaitá (AM)
Foto do dia 17 mostra incêndio florestal em curso na Amazônia, perto de Humaitá (AM) - Ueslei Marcelino - 17.ago.2019/Reuters

Mas foi a ministra Tereza Cristina (Agricultura) que soou o alarme: a rota estabelecida pelo presidente, que chegou a acusar ONGs pelos incêndios e fez piada sobre ser o "capitão motosserra", levaria o Brasil inexoravelmente à condição de vilão ambiental mundial, e teria implicações econômicas sérias.

A ministra se fez ouvida no Planalto. O secretário de Comunicação, Fábio Wajngarten, ajudou a organizar a reunião de oito titulares da Esplanada para convencer Bolsonaro a adotar um plano de contingência para a crise que se avolumou com a radicalização da posição do presidente francês, Emmanuel Macron.

No encontro foi definido que o Exército daria a resposta inicial, com sugestões de uso intensivo de aeronaves, tudo o que rendesse imagens de impacto na TV.

Foi ponderada a dificuldade orçamentária da Força, que mal alimenta recrutas nesses dias de contingenciamento, mas o ministro Fernando Azevedo (Defesa) ficou incumbido de apresentar um plano com outras áreas, como Meio Ambiente e Agricultura, para dar visibilidade máxima à ideia de que o Brasil está combatendo as chamas.

A operação de Garantia da Lei e da Ordem para este fim pode ser divulgada já nesta sexta (23), após reunião ministerial no Palácio do Planalto. Bolsonaro deverá também fazer um pronunciamento na televisão, onde o tom tende a ser mais didático do que suas falas públicas recentes, mas no qual será ressaltada a questão da soberania do Brasil sobre a Amazônia.

Tanto no Itamaraty quanto no Planalto, a leitura é que Macron está jogando para seu público interno —o francês enfrenta fortes questionamentos do movimento dos "coletes amarelos" e sua difusa agenda de protestos semanais. 

O presidente francês, Emmanuel Macron, fala em Paris na véspera do encontro do G7
O presidente francês, Emmanuel Macron, fala em Paris na véspera do encontro do G7 - Michel Spingler/Pool/Reuters

Isso dito, antagonizar Macron no mesmo nível aplicado pelos filhos de Bolsonaro na internet não está sendo aconselhado ao presidente. Eduardo, candidato a embaixador em Washington, postou imagem do francês o chamando de "idiota". Houve péssima repercussão do fato dentro do Itamaraty.

A questão central é ideológica. Bolsonaro vem do Exército, onde a defesa da Amazônia é um ponto central que remete ao começo da República. Nos anos 1910, a extensão da rede telegráfica do Mato Grosso para a Amazônia levada a cabo pelo futuro marechal Cândido Rondon (1865-1958) estabeleceu princípios de integração nacional ensinados em escolas militares até hoje.

Em 1931, o capitão do Exército Mário Travassos (1891-1973) publicou o livro central da doutrina brasileira para a região, "Aspectos Geográficos Sul-Americanos", um dos marcos da geopolítica do país. Ali a ideia do "integrar para não entregar" foi assentada, influenciando o chamado desenvolvimentismo que acompanhou o crescimento econômico até os anos 1980.

A doutrina é parcialmente fundamentada no temor de perda de soberania sobre a Amazônia. Desde a ditadura (1964-85), tal preocupação ganhou contornos paranoicos. Obras foram escritas sobre interesses estrangeiros nos recursos naturais da região, e ações governamentais como abertura de estradas e exploração de garimpos abundaram.

Se a ação de ONGs de fachada mapeando biodiversidade e riquezas minerais é algo aceito por observadores menos ativistas, a ideia de desmembramento da região em nome do internacionalismo nunca encontrou lastro na realidade.

Bolsonaro sempre sinalizou viver imerso nessa visão, dizendo que o país seria uma "virgem que todo tarado quer". Antes de ser candidato a presidente, publicou em rede social um mapa sintetizando a ideia do "triplo A" —o corredor biológico e econômico dos Andes, Amazônia e Atlântico, que seria objeto de desejo das grandes potências. Voltou ao tema na campanha eleitoral e já no cargo.

A isso se soma o discurso também sem base de que estrangeiros querem ver áreas indígenas protegidas como forma de preparar sua independência, ideia bastante comum em quartéis e que alimenta a ojeriza de Bolsonaro à política para o setor feita até seu governo.

O entorno militar de Bolsonaro vai na mesma linha, com o general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) sendo seu mais vocal representante. Ex-comandante da Amazônia, Heleno não mede palavras quando o assunto é a suposta ameaça à soberania.

O vice-presidente, general Hamilton Mourão, é outro que vai na mesma linha, e foi ele quem deu uma resposta mais objetiva à bobagem dita por Macron sobre a Amazônia ser o "pulmão do mundo". Mesmo o hoje escanteado Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército que entrou em choque com a ala dita ideológica do governo, apoiou Bolsonaro.

Com isso, não é casual que o Exército fique à frente da operação agora. É ao mesmo tempo uma satisfação pela gravidade da crise alimentada pelas reações intempestivas de Bolsonaro e também um recado simbólico sobre quem os militares consideram mandar na floresta.

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