Com avanço do desmatamento, animais do cerrado e da Amazônia perdem até 90% do habitat

Estudo sobrepôs mapas do avanço de pastagens e soja com os das áreas de 486 espécies ameaçadas dos dois biomas

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Camilla Veras Mota
São Paulo | BBC News Brasil

São muitas as espécies de plantas e animais da Amazônia com potencial farmacológico –ou seja, que podem ser usadas para fazer novos medicamentos ou cosméticos.

As espécies de sapos da família Dendrobatidae, por exemplo, têm sabidamente peles ricas em moléculas que podem ser aproveitadas para o desenvolvimento de remédios como analgésicos.

O avanço do desmatamento, contudo, pode eliminar esses e outros animais e vegetais do planeta antes que os benefícios possam ser explorados.

Mascote da Copa de 2014, tatu-bola tem habitat ameaçado pelo avanço da soja
Mascote da Copa de 2014, tatu-bola tem habitat ameaçado pelo avanço da soja - Adriano Gambarini/WWF-Brasil

No caso específico dos sapos da família Dendrobatidae, uma de suas espécies, a rã flecha (Hyloxalus chlorocraspedus), já perdeu 68% de sua área de ocorrência. Ela é encontrada apenas no município de Porto Walter, no oeste do Acre, região em que a floresta nativa vem perdendo espaço.

A espécie é uma das 486 avaliadas por um estudo recente do WWF-Brasil e passado com exclusividade à BBC News Brasil.

Realizado pela consultoria Gondwana e financiado pela União Europeia no âmbito do projeto Eat4Change, o levantamento cruzou os mapas do desmatamento da Amazônia e do cerrado até 2019 com os mapas de ocorrência de espécies ameaçadas ou que vivem em áreas restritas para entender como a perda da vegetação nativa afeta essa biodiversidade.

Do total, quase todas (484 de 486) perderam parte de seu habitat. Algumas viram suas áreas de ocorrência encolher em mais de 90%, como é o caso da perereca Dendropsophus rhea (93,1%), endêmica do cerrado, e da serpente Typhlonectes cunhai (93,6%), endêmica da Amazônia.

Os anfíbios foram os mais afetados: a área de distribuição das 107 espécies analisadas reduziu em 43%. Para lagartos e serpentes, o percentual foi de 29%; mamíferos, 27%; e aves, 26%.

Espécies com maior perda de área no cerrado
Espécies com maior perda de área no cerrado - Fonte: WWF-Brasil

Símbolo do cerrado, o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) já perdeu mais da metade do território.

A cuíca (Gracilinanus microtarsus), um marsupial com grande potencial socioeconômico para a agricultura por ser um voraz predador de insetos, reduziu sua distribuição no bioma em cerca de 67% –nível próximo do observado (68%) para o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus), ave criticamente ameaçada que usa o bico fino para pescar e é conhecida por só habitar áreas com rios límpidos e cristalinos.

Animais que vivem entre os dois biomas, como o chororó-de-goiás (Cercomacra ferdinandi), foram especialmente afetados. Esse é um pássaro que encontrado na bacia do rio Araguaia, com uma área de ocorrência significativa –107,5 mil km² no cerrado e 49,7 mil km² na Amazônia–, mas que não foi suficiente para que ele fosse protegido.

De acordo com o estudo, a alteração dos ciclos de inundação do rio Araguaia por barragens e a substituição da vegetação nativa por pasto fizeram desaparecer 74% de sua área de ocorrência na Amazônia e 35% no Cerrado.

Novas fronteiras agropecuárias

A análise apontou que, em ambos os biomas, a vegetação nativa vem dando lugar principalmente a pastagens e plantações de soja. Dados MapBiomas até 2019 apontaram que essas atividades ocupavam 40,9% da área original do cerrado (33,8% pasto; 7,1% soja) e 14,6% da Amazônia (13,8% pasto; 0,8% soja).

A região mais afetada é o cerrado, que há décadas vinha perdendo vegetação nativa com o avanço da agropecuária, especialmente a área que compreende os estados de São Paulo e Goiás.

O desmatamento mais recente, depois dos anos 1990, se estendeu sobre a área conhecida como Matopiba, acrônimo formado pelas siglas dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Avanço de área de pastagem é uma das principais causas da perda de vegetação nativa nos biomas
Avanço de área de pastagem é uma das principais causas da perda de vegetação nativa nos biomas - Adriano Gambarini/WWF-Brasil

A expansão da fronteira agrícola nessa região tem ameaçado, por exemplo, o tatu-bola (Tolypeutes tricinctus), escolhido como mascote da Copa de 2014. Em apenas cinco anos, a espécie assistiu a um aumento de 9% da cultura de soja dentro dos limites de seu habitat.

O levantamento não chegou a fazer distinção entre as áreas em que o desmatamento foi ilegal ou dentro da lei. Nesse sentido, Mariana Napolitano Ferreira, gerente de ciências do WWF-Brasil, ressalta que, ao contrário do bioma Amazônia, o Cerrado tem poucas áreas protegidas.

"Quase 50% da Amazônia são áreas de conservação ou protegidas; no cerrado esse percentual é de 12%, bem pouco. A área de reserva legal [determinada por lei] para propriedades na Amazônia é de 80%. No cerrado, cai para 20%, em alguns lugares, para 35%."

"Tem muita área legal para desmatar no cerrado. Ainda é muito pouco protegido pela legislação."

Nesse sentido, a bióloga avalia ser necessário pensar em uma "política de planejamento territorial menos agressiva sobre o bioma".

Além de criar áreas protegidas, é possível pensar em um uso mais inteligente da terra, diz ela, com a expansão da produção agrícola em áreas de pastagens já existentes, mas que sabidamente estão degradadas e/ou são pouco produtivas.

Espécies com maior perda de área na Amazônia
Espécies com maior perda de área na Amazônia - Fonte: WWF-Brasil

Na Amazônia, o desmatamento está concentrado especialmente na parte sul, com impacto direto sobre animais como o sagui-de-Rondônia (Mico rondoni), espécie apenas encontrada no estado que lhe dá nome e que responde hoje por uma das porções mais desmatadas do bioma.

Com uma área de ocorrência original de 72 mil km², o mamífero já havia perdido 40% dela até 2014 e, nos 5 anos até 2019, quando houve intensificação do desmatamento, viu desaparecer mais 9%.

Fora da região mais desmatada do bioma, espécies que se concentram em áreas pequenas, como o macaco-parauacu (Pithecia cazuzai) e o lagartinho-de-Anavilhanas (Loxopholis ferreirai) viram a perda de seus habitats se multiplicarem em 10 vezes nos últimos 5 anos.

"A produção de commodities, em especial soja e carne bovina estão entre os maiores vetores de degradação ambiental da atualidade, e da forma como são conduzidos hoje, ameaçam a capacidade do planeta de inclusive produzir alimentos no futuro", diz o texto da análise.

Efeito cadeia

A perda de área causa desequilíbrios que vão além do impacto individual em cada espécie, ressalta Ferreira. No caso dos predadores, como o próprio lobo-guará ou o gato-do-mato-pequeno (Leopardus guttulus), que já perdeu quase 80% de seu habitat no cerrado, o impacto se estende por toda a cadeia.

"Essas espécies estão regulando de cima para baixo. Se você tira o predador, pode haver um crescimento exagerado de uma população de roedores, por exemplo."

Algumas espécies, ela lembra, são importantes para a distribuição de sementes. Sua maior vulnerabilidade, portanto, também tem impacto negativo sobre a biodiversidade da flora.

Macaco-prego-de-papo-amarelo já perdeu quase 80% da área de ocorrência no Cerrado
Macaco-prego-de-papo-amarelo já perdeu quase 80% da área de ocorrência no cerrado - Adriano Gambarini/WWF-Brasil

Em uma escala mais macro, a deterioração do cerrado e da Amazônia aponta para consequências de longo prazo que transbordam os biomas e podem ter impacto sobre outras regiões do país.

"O problema vai muito além da perda de espécies. A biodiversidade é um indicador de saúde dos ecossistemas", diz a bióloga.

"A diminuição da biodiversidade está ligada à perda de cobertura vegetal, à degradação dos corpos hídricos. Isso tem impacto na produção agropecuária, nos ciclos de chuva e seca, pode ter como consequência períodos de estiagens mais longos, mais queimadas, desabastecimento. Tudo está interligado."

O cerrado se espalha por 11 estados na região central do país e ocupa cerca de 25% do território. São milhares de espécies de plantas, algumas delas endêmicas, como o baru e o pequizeiro, e centenas de espécies de aves, mamíferos, répteis, anfíbios e mamíferos.

O bioma é também uma das mais importantes fontes de água para o país. É berço de nascentes de rios que compõem bacias hidrográficas como a da Amazônica, do São Francisco, do Araguaia/Tocantins e do Paraná/Paraguai.

Já a Amazônia é a floresta tropical mais extensa e rica em espécies do mundo, ocupando mais de 40% do território nacional.

Por conta do fenômeno conhecido como "rios voadores", a região tem impacto direto sobre o regime de chuvas no Centro-Sul do país. Em paralelo, é considerada fator-chave na luta contra as mudanças climáticas e o aquecimento global.

Isso porque a vasta cobertura vegetal da Amazônia retira grandes quantidades de gás carbônico (CO2) da atmosfera, um dos gases de efeito-estufa. E, ao contrário de florestas localizadas em regiões mais afastadas da linha do Equador, que em alguns casos passam por invernos rigorosos em que as plantas perdem suas folhas, a floresta amazônica "trabalha" durante o ano inteiro.

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