População afetada por enchentes no Brasil pode triplicar, diz painel da ONU

Relatório do IPCC considera cenário de aquecimento global de 1,5ºC

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São Paulo

A população afetada por enchentes e deslizamentos de terra no Brasil pode dobrar ou até triplicar nas próximas décadas, em um cenário de aquecimento global de 1,5ºC —atualmente, o planeta já aqueceu 1,1ºC em relação aos níveis pré-industriais.

A conclusão está entre os destaques regionais do novo relatório do painel do clima da ONU, o IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança do Clima). Lançado nesta segunda-feira (28) por 270 autores, o trabalho atualiza o conhecimento sobre os impactos socioeconômicos da mudança climática, a partir da revisão de 34 mil artigos.

A elevação da temperatura já aumenta a frequência e a intensidade das chuvas fortes e inundações, com rápida formação de nuvens mais densas. Mas as projeções climáticas apontam expansão das áreas atingidas.

Se as emissões globais de gases estufa continuarem em alta, haverá maior risco de inundações mais frequentes e extremas nos estados do Acre, Rondônia, sul do Amazonas e Pará. No delta amazônico, entre o Pará e o Amapá, 41% da população está exposta a danos por inundações.

Ponte detruída após forte chuva no município de tamarajú, interior da Bahia, em dezembro de 2021 - Eduardo Anizelli/Folhapress

O país também está entre os mais vulneráveis às ondas de calor extremo, com regiões do país podendo chegar a aumentos de 2ºC a 6ºC na temperatura média.

A soma de calor e umidade cria condições perigosas e pode ser mortal, principalmente para jovens e idosos.

Ondas de calor, com duração mínima de dois dias, duraram três dias a mais no Brasil entre 2016 e 2020, em comparação com o período de 1986 a 2005.

"Uma temperatura do bulbo úmido [medida que combina calor e umidade] de 35°C é insuportável por mais de cerca de seis horas, mesmo para adultos em forma e saudáveis que descansam à sombra", diz o estudo.

Caso as emissões continuem em alta, partes do Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil ficarão sujeitas a essas condições de calor perigoso por até 30 dias por ano. Nesse cenário, as mortes por calor no Brasil aumentarão 3% até 2050 e 8% até 2090.

As ilhas de calor urbano também devem expor moradores de grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

A combinação do aumento do calor e da umidade também torna o clima mais propício a doenças infecciosas como dengue, zika, chikungunya e malária.

Em algumas regiões do país, o potencial de transmissão de dengue aumentou de 17% na década de 1950 para 80% nos últimos cinco anos, um efeito hoje atribuído pela ciência às mudanças climáticas.

As inundações também aumentam a ocorrência de doenças diarreicas, leptospirose e dermatites. O clima mais quente facilita ainda o aparecimento de zoonoses transmitidas por vírus. Em todo o país, há risco de epidemias severas causadas por vetores sensíveis ao clima.

Com as mudanças na temperatura, os cientistas já têm observado a expansão de doenças para áreas que antes não eram atingidas. As projeções sobre a malária confirmam que o fator climático influencia o alcance geográfico, a intensidade de transmissão e a sazonalidade da doença.

"As mudanças no padrão de risco se tornam mais complexas com a elevação da temperatura", diz o relatório.

Apesar do aumento das chuvas fortes, a precipitação média anual no país deve cair 22% ao longo do século, segundo as projeções do painel do clima, caso as emissões globais de gases estufa continuem em alta, ou seja, as chuvas caem mais concentradas e em períodos menos regulares.

Enquanto isso, as secas devem se prolongar, afetando as regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A mudança no padrão hidrológico põe todo o país sob risco de insegurança alimentar.

Na Amazônia, a mudança da floresta tropical para pastagens secas pode reduzir 40% das chuvas, quebrando a distribuição de chuvas para o Sul e Sudeste.

No Nordeste brasileiro, as secas com pelo menos um mês de duração atingiram uma área 64,5% maior na última década em comparação com a década de 1950. As áreas com secas superiores a três meses também expandiram em 38% e aquelas atingidas por mais de seis meses aumentaram 12% no mesmo período.

A região Nordeste está entre as mais sensíveis do continente a migrações forçadas pelo clima. No mundo, secas, inundações, tempestades e furacões estão entre as causas climáticas mais comuns de deslocamentos.

O impacto desses eventos extremos é ainda maior sobre mulheres. Segundo o relatório, nas situações de crise geradas por desastres climáticos, elas perdem trabalho e se voltam para a economia informal com mais frequência que os homens.

Os extremos climáticos também afetam desproporcionalmente a população em pobreza e extrema pobreza, crianças, idosos, pessoas com deficiência e populações indígenas, que já têm sofrido impactos climáticos como escassez de água, redução da produção agrícola e deslocamentos.

"Em deslocamentos e migrações forçadas por efeitos climáticos, as mulheres são mais propensas a perder sua liderança, autonomia e voz, especialmente em novas estruturas organizacionais impostas por autoridades. É o caso, especialmente, de acampamentos temporários criados após desastres, que aumentam as desigualdades existentes", afirma o relatório no capítulo voltado à região das Américas do Sul e Central.

Apesar dos impactos catastróficos já serem observados atualmente, há medidas de adaptação às mudanças climáticas que podem frear a tendência de aumento dos impactos climáticos.

O painel do clima cita exemplos de políticas de adaptação que apresentaram efetividade.
Entre as ações tomadas pelo poder público, o relatório cita a criação de espaços verdes em áreas urbanas, realocação de famílias localizadas em áreas propensas a desastres, restauração e melhora do acesso à água potável.

"A construção de infraestrutura verde-cinza tem sido uma medida popular de adaptação pública para reduzir mortes e lesões devido a inundações. A infraestrutura foi melhorada em escolas, prédios públicos e sistemas de drenagem em cidades como Bogotá (Colômbia) e La Paz, na Bolívia. No Brasil, foram implantadas obras de canalização para reduzir as inundações do Rio Tietê, que atravessa a região metropolitana de São Paulo; com base em simulações de inundação", exemplifica o estudo.

"Outro exemplo de medida pública de adaptação é a proteção e restauração de áreas naturais, que tem potencial para diminuir a transmissão de doenças infecciosas transmitidas pela água e por vetores", afirma o painel do clima.

Por outro lado, medidas de adaptação mal planejadas podem aumentar os riscos e os impactos negativos causados por eventos climáticos extremos. O IPCC avaliou as medidas tomadas em todas as regiões do mundo e classificou como má adaptação os exemplos que, embora tenham a intenção de proteger uma região de danos, acabam ampliando a proporção dos desastres.

"Um exemplo é a ação de construir um muro para se preparar contra inundações. Aí vem uma cheia mais alta, o muro desaba e gera ainda mais problemas", afirma Jean Ometto, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e um dos autores do relatório do IPCC.

"A adaptação ao clima precisa ser planejada de forma transversal, integrando diversos setores, para gerar um desenvolvimento resiliente", ele aponta.

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