Descrição de chapéu The New York Times

Agência de desenvolvimento sustentável da ONU recebe recursos de petroleiras na Amazônia

Entidade ajudou empresas de energia a produzir dossiês contra adversários

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Sarah Hurtes Julie Turkewitz
Reserva Buenavista (Colômbia) | The New York Times

Na borda da Amazônia colombiana, em uma aldeia indígena cercada por plataformas de petróleo, o povo siona enfrentou um dilema.

O Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) acabara de anunciar um pacote de ajuda regional de US$ 1,9 milhão (R$ 9,79 milhões). Em uma aldeia sem água encanada, eletricidade intermitente e pobreza constante, qualquer dinheiro significaria comida e oportunidades.

Mas o programa de ajuda fazia parte de uma parceria entre a agência da ONU e a companhia de petróleo GeoPark. A empresa multinacional mantém contratos para perfurar perto da reserva siona, incluindo um com o governo que expandiria as operações no local que os siona consideram sua terra ancestral. Para o povo siona da reserva Buenavista, a perfuração de petróleo é um ataque parecido com drenar o sangue da terra.

Exploração de petróleo em Putumayo, na Colômbia - Federico Rios - 6.fev.2022/NYT

Essa colaboração é um exemplo de como uma das maiores organizações de desenvolvimento sustentável do mundo faz parceria com poluidores, mesmo os que às vezes trabalham contra os interesses das comunidades que a agência deveria ajudar.

Do México ao Cazaquistão, essas parcerias fazem parte de uma estratégia que trata as empresas petrolíferas não como vilãs ambientais, mas como grandes empregadoras que podem levar eletricidade a áreas distantes e crescimento econômico a países pobres e de renda média. A agência de desenvolvimento usa dinheiro do petróleo para fornecer água potável e treinamento profissional em áreas que de outra forma poderiam ficar desprovidas.

Mas documentos internos e dezenas de entrevistas com autoridades atuais e antigas mostram que, quando a ONU fez parceria com empresas de petróleo, a agência também reprimiu a oposição local à perfuração, fez análises de negócios para o setor e trabalhou para que as companhias continuassem operando mais facilmente em áreas sensíveis.

O escritório do Pnud na Colômbia, em particular, é uma porta giratória de funcionários de companhias de petróleo e órgãos de energia que entram e saem. A agência de desenvolvimento da ONU também trabalhou com o governo e a indústria petrolífera para compilar dossiês sobre adversários da perfuração.

Não há evidências de que esses dossiês tenham sido usados para atingir alguém, mas, num país onde ativistas ambientais são mortos em número maior que em qualquer outro lugar do mundo, ativistas e membros da comunidade disseram sentir que suas vidas correram risco.

Mesmo enquanto a ONU dá o alarme sobre as mudanças climáticas e pede uma redução drástica no consumo de combustíveis fósseis, seu braço de desenvolvimento às vezes serve como promotor da indústria de petróleo e gás.

"O setor de petróleo e gás é uma das indústrias em todo o mundo capazes de gerar os maiores impactos positivos nas condições de desenvolvimento das pessoas", escreveu o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento em 2018.

A agência disse que apoia uma transição de energia limpa e não incentiva a prospecção. Mas Achim Steiner, chefe do Pnud, disse que sua missão é tirar as pessoas da pobreza e que isso muitas vezes significa trabalhar em países que são construídos com carvão, petróleo e gás. "Temos que começar onde as economias estão hoje", disse Steiner. "Não vejo uma contradição, mas há uma tensão."

Somando-se a essa tensão, segundo os funcionários, há uma pressão implacável de arrecadação de fundos. A agência recebe uma porcentagem das doações, cerca de 3% a 10%. As autoridades, apoiadas por auditorias da própria agência, dizem que isso pressiona os gerentes de desenvolvimento a encontrar parceiros nos países a que foram designados, mesmo quando os doadores trabalham contra os interesses da agência.

E-mails internos mostram que autoridades graduadas se irritaram por ter que aplicar um verniz nas empresas mais sujas do mundo —processo que os críticos chamam de "lavagem azul", devido à cor característica da organização.

Em 2017, por exemplo, dois anos após os líderes mundiais adotarem o acordo do clima de Paris, a agência publicou um relatório sobre o papel positivo que a indústria de petróleo e gás poderia desempenhar no mundo. Ela listou uma iniciativa de reciclagem da Exxon Mobil e a promoção da engenharia pela Chevron em escolas.

"Eu realmente acho que essa publicação é problemática, pois visa retratar a indústria de petróleo e gás sob uma luz favorável", escreveu um funcionário da agência em um e-mail em grupo. O relatório "estava minando nossa mensagem sobre energia sustentável", dizia outro e-mail.

Como parcela do orçamento de US$ 8 bilhões da agência, o dinheiro do setor de energia é uma ninharia: cerca de US$ 6 milhões por ano, segundo dados fornecidos pelo Pnud. Mas localmente esse dinheiro pode ter efeitos descomunais.

Em nenhum lugar esses efeitos são mais sentidos do que na Colômbia, onde empresas petrolíferas, governo, grupos armados e ambientalistas lutam pelo futuro da Amazônia. O desmatamento atingiu níveis recordes, ameaçando a floresta tropical que serve como amortecedor global contra as mudanças climáticas.

Até o ano passado, o povo siona que vivia às margens do lamacento rio Putumayo, no sul da Colômbia, via a agência de desenvolvimento da ONU como uma aliada nessa luta. A comunidade havia se beneficiado de uma doação anterior da agência. Depois veio a parceria com a GeoPark.

'Oferta do ano'

Mario Erazo Yaiguaje, líder comunitário de fala mansa e ex-governador da reserva de Buenavista, suspeitava que o programa de ajuda do Pnud era uma tentativa furtiva da companhia petrolífera de forçar seu vilarejo a aceitar sua presença na região.

Os siona de Buenavista vivem em casas de madeira num pequeno território recortado na Amazônia, na fronteira com o Equador. A vida em comunidade gira em torno da "chagra", um terreno rural, e do "yagé", substância que o mundo exterior rotula como alucinógena, mas os siona consideram um remédio que, quando tomado sob a orientação de um ancião, lhes permite receber sabedoria e orientação.

A região é palco de conflitos há gerações, e os siona de Buenavista veem as empresas petrolíferas como a fonte de seus problemas, atraindo tanto rebeldes de esquerda, que atacaram os oleodutos da área, quanto soldados do governo, que são enviados para proteger a infraestrutura da empresa. Juntos, indústria de petróleo e comércio de cocaína contribuíram para tanta violência que um dos mais altos tribunais do país classificou os siona como população em "risco de extermínio".

A ONU anunciou sua parceria com a GeoPark num momento de controvérsia. A empresa já se defendia em uma ação judicial sobre um derramamento de óleo na região. Então, uma organização de defesa local acusou publicamente a GeoPark de contratar um grupo armado para ameaçar os oponentes da perfuração. A empresa negou veementemente a denúncia, mas ativistas da região disseram temer por suas vidas.

Erazo viu o acordo com a GeoPark como uma tática para "limpar o nome deles", afirmou. "Quando vimos que a GeoPark estava dando dinheiro ao Pnud, percebemos que tinham feito o acordo do ano."

A GeoPark disse que não tem interesse em perfurar na reserva siona e tomou medidas para desistir de seu arrendamento no território disputado. Disse que sua parceria com a agência de desenvolvimento visava ajudar as comunidades que sofreram economicamente durante a pandemia de Covid. O dinheiro não se destinava aos siona, disse a empresa.

"Sempre tivemos um relacionamento baseado no diálogo, no respeito e na construção de confiança com nossos vizinhos", disse a empresa em comunicado.

Os siona de Buenavista viram as coisas de outra forma e começaram a se preparar para uma decisão difícil.

'Isso é um truque'

Achim Steiner, do Pnud, disse que sua agência trabalha em condições difíceis para levar dinheiro e oportunidades às pessoas que mais precisam. Ele não define as políticas energéticas da Colômbia e não pode ordenar que o governo pare de perfurar em certas áreas —o que ele pode fazer, segundo disse, é procurar maneiras de minimizar os danos às comunidades e ao meio ambiente.

"Mas também maximizar os benefícios de uma indústria —indústrias extrativistas de modo geral— que é muito importante e uma fonte de receita significativa para muitos países em desenvolvimento", disse ele.

Um funcionário de desenvolvimento deu um argumento semelhante no ano passado em uma ligação tensa com Erazo e outros sobre o acordo da GeoPark. A ONU não convidou as companhias petrolíferas para a área, disse a responsável, Jessica Faieta. Mas "agora que elas já estão na região, podemos de alguma forma garantir que cumpram os direitos humanos".

Os siona de Buenavista ficaram lívidos. A ONU parecia estar endossando as companhias de petróleo, disse Erazo.

Essa conversa torpedeou qualquer esperança de vencê-las. Os siona apresentaram uma reclamação formal à agência, devolveram sua verba anterior e juraram nunca mais aceitar ajuda do programa de desenvolvimento.

"As pessoas aplaudem cada vez que um representante do Pnud chega, porque ele traz alguma coisa. 'Deus abençoe!'", disse Erazo. Mas ele continuou: "Isso é um truque". A parceria com a GeoPark, segundo disse, foi "a morte dessa organização para nós".

A agência de desenvolvimento cancelou a parceria com a GeoPark e agora está investigando por que se envolveu com a empresa quando as queixas dos siona já eram tão conhecidas. "Acho que é uma crítica legítima", disse Steiner. "Você sabe, nós aprendemos com as lições."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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