Empresa notifica fiscal do Ibama para apagar post sobre pesca de tubarão

Companhia Bom Peixe diz que foto de embalagem usada em publicação sobre riscos ambientais da venda de cação é ataque à sua reputação

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São Paulo

Um agente do Ibama recebeu uma notificação extrajudicial da empresa Bom Peixe Indústria e Comércio por ter feito uma postagem em suas redes sociais apontando problemas envolvidos no consumo de cação, nome genérico sob o qual são vendidos tubarões e raias.

"O que você está vendo na foto são milhares de barbatanas de tubarão apreendidas pelo Ibama no estado do Pará, resultado de uma das práticas humanas mais cruéis contra animais", dizia a postagem do agente Wallace Lopes, diretor da Asibama-TO (Associação dos Servidores do Ibama Tocantins).

Em uma série de tuítes, Lopes falava sobre como o Brasil participa da pesca de tubarões, inclusive dos ameaçados de extinção.

Resumidamente, as barbatanas desses peixes são muito valorizadas no comércio oriental. A carne, porém, não segue para o mesmo mercado. E é aí que o Brasil entra. O país é tido como o maior consumidor de carne de tubarão do mundo, usualmente sob a rotulagem genérica de "cação" e com preços acessíveis.

Tubarão no mar
Carcharhinus leucas, conhecido como tubarão-cabeça-chata, nada na Flórida, nos EUA; espécie é tida como vulnerável na classificação de ameaça de extinção - Joseph Prezioso - 12.fev.2022/AFP

Entre as fotos de embalagens publicadas por Lopes para exemplificar a venda de cação, estava um pacote da Bom Peixe.

Na notificação, a empresa diz que a associação da Bom Peixe às práticas citadas na publicação do agente é "absolutamente inverídica, veicula desinformação e não corresponde à realidade".

Segundo a companhia, trata-se de um ataque à reputação da marca, que adotaria, segundo o documento enviado à Corregedoria do Ibama, "rigoroso controle de rastreabilidade, origem e qualidade".

A Folha tentou por mais de uma semana contato com a empresa, tanto por telefone quanto por email. Nenhuma mensagem foi respondida e os contatos telefônicos também não tiveram sucesso.

A reportagem perguntou quais espécies são vendidas sob a rotulagem de "cação", se a identificação consta nas embalagens da empresa e quais são os fornecedores da companhia. A Folha também tentou contato com os advogados da Bom Peixe, mais uma vez sem sucesso.

A Bom Peixe tem duas multas por infrações ambientais, ambas no valor de R$ 9.000. Em 2011, a empresa foi multada pelo Ibama por informações total ou parcialmente falsas/enganosas/omissas nos sistemas ambientais oficiais. Em 2016, a multa foi por deixar de se inscrever no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais.

A Folha também questionou a empresa sobre as multas, mas não recebeu resposta.

O agente do Ibama acabou retirando a postagem original do ar e refazendo-a. Na nova publicação, voltou a mostrar embalagens de cação, mas escondeu os nomes das empresas.

A corregedoria do Ibama, por sua vez, considerou que o assunto não era de sua área de competência, considerando que o agente, nas redes, manifesta-se como cidadão, não como fiscal do Ibama.

Lopes diz que ficou surpreso ao receber a notificação e ao ver que a mesma tinha sido enviada à Corregedoria do Ibama, o que ele considera uma tentativa de intimidação e de a empresa prejudicá-lo profissionalmente.

"Nas mensagens originais eu sequer menciono o nome da Bom Peixe. Apenas apresentei uma embalagem, destas que a gente encontra em qualquer supermercado, para mostrar que as empresas do ramo rotulam a carne de tubarão como cação, e isso é um fato", afirmou.

De toda forma, diz o agente, a postagem original foi apagada para evitar maiores contendas.

Risco de extinção

A pesca vem ameaçando os tubarões pelo mundo, um animal que habita os mares da Terra há mais de 400 milhões de anos e sobreviveu a diversas extinções em massa.

A prática cruel citada pelo agente do Ibama em sua série de postagens é o chamado finning. Trata-se da retirada das valorizadas barbatanas —que, usualmente, são destinadas a uma sopa oriental que simboliza abundância— e do posterior descarte do corpo do animal —às vezes, ainda vivo— no mar. A ação já é proibida em diversos locais no mundo, inclusive no Brasil (desde 1998).

Após a retirada das barbatanas, geralmente a cabeça do tubarão é cortada. Com o esse tipo de ação fica mais difícil verificar, a partir do "resto" do bicho, a espécie em questão.

A consequência disso é que não se sabe que "cação" se tem em mãos. Estudos brasileiros que fizeram análises de DNA de amostras em diferentes mercados encontraram percentuais elevados —em geral, acima de 50%— de exemplares pertencentes a espécies com algum grau de ameaça de extinção.

Com isso, vale mencionar que apesar do destaque que o finning recebe, o consumo de carne de tubarões e raias tem sido mais lucrativo e mais volumoso. Segundo um estudo internacional da ONG WWF, de 2012 a 2019, enquanto o comércio de barbatanas movimentou US$ 1,5 bilhão, o de carne levantou US$ 2,6 bilhões. A mesma pesquisa aponta o Brasil como líder entre os países importadores de carne de tubarão.

Uma pesquisa publicada em 2021 na revista Nature aponta um declínio acentuado de 71% nas populações de tubarões e raias nos oceanos. O principal motivo para isso foi a pressão exercida pela sobrepesca (ou seja, pesca excessiva).

Segundo a mesma pesquisa da Nature, todas as 31 espécies de tubarões oceânicos tiveram aumento em seus riscos de extinção desde 1980.

Um dos pontos que aumentam o risco às espécies de tubarões é a maturidade sexual tardia, ou seja, são animais que demoram para ter a possibilidade de se reproduzir, e uma baixa fecundidade, o que se traduz em poucos filhotes.

Outra preocupação é que tubarões são animais de topo da cadeia alimentar, como grandes predadores. A diminuição de suas populações, portanto, pode ter efeitos profundos nos ecossistemas aquáticos.

Além disso, níveis de mercúrio elevados já foram encontrados em pesquisas relacionadas à carne de cação. A FDA (agência americana de regulação de drogas e alimentos, equivalente à brasileira Anvisa) afirma que mulheres grávidas, amamentando e crianças de 1 a 11 anos devem evitar carne de tubarão.

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